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CLIPP nas IX Jornadas da EBP-SP – Rosângela Turin, Diretora Secretária e Tesoureira da CLIPP, apresenta O barco embriagado de Rimbaud – solidão e errância do poeta.

“Quem fala só tem a ver com a solidão”

O barco embriagado de Rimbaud- solidão e errância do poeta
A tempestade abençoou meus despertares marinhos
Mais leve que a rolha dancei sobre ondas
Que são para as vítimas eternos redemoinhos,
Dez noites, sem lamentar o olho tolo dos faróis!

O encontro com a solidão do outro supõe uma suspensão da comunicação, uma ruptura nas conexões e, segundo LA SAGNA (2017, p.74) para se desprender do gozo da mensagem, é preciso, portanto renunciar ao modo de gozar, à excitação que produz a comunicação.“O modo de gozar contemporâneo produz, por consequência, um eu isolado, fóbico, que é apenas um reflexo em defesa dessa excitação permanente. Essa defesa produz efeitos (…)dispersão, hipomania, a adição, …ou pior”
Segundo o autor é o modo de gozo dos sujeitos que, atualmente se reduziu ao que Lacan denominou um “mais de gozar”. E define a segregação como “uma forma coletiva de organização social que mantém os sujeitos separados no real ali onde a separação simbólica fracassou.”
Considerando o isolamento generalizado como a forma moderna, individualista e consentida de uma segregação suave, um a um, seria a errância um fenômeno ainda atual? A errância de quem se põe a vagar sem rumo pelas estradas da vida, seja por motivos econômicos seja pela marginalidade social ou ainda se refugiando em outro país, seria também um efeito, um reflexo em defesa dessa excitação permanente do modo de gozar contemporâneo?
Errância é descrita no dicionário como qualidade ou condição de errante, que por sua vez,  significa andar sem destino, característica de quem erra, que vive a vaguear, que não possui uma residência fixa, que se desvia do caminho da sensatez, sem bom senso,  refere-se à aptidão de ser nômade, perdido ou desnorteado.
No fim do século XIX estabeleceu-se na literatura alienista francesa uma associação entre errância e loucura tratando os alienados viajantes como categoria diagnóstica. Em 1877 o médico francês Philippe Tissié publicou “Les aliénés voyageurs” onde relata o caso de alienação viajante de Albert D. de 26 anos que fez numerosas viagens ao longo de sua vida.  O jovem chega chorando ao hospital onde ele trabalhava e, depois de viajar 70 km a pé, mesmo cansado, não  podia se impedir de partir.
Segundo RAMIREZ (2015) há uma desinserção correlata à errância, e a define como “ a perda de toda referência simbólica e nos permite localizar uma consequência inevitável dessa situação de errância(…) alguém que perde suas raízes fica suspenso, sem poder agarrar, tomar posse de algo que trabalha como uma âncora e de alguma maneira o assegura.”
E acrescenta o título do seminário 21 de Lacan. “Os não tolos erram” (Les non-dupes errent”) que faz homofonia em francês com “Os Nomes do Pai” (Les noms du père). O tolo é aquele que adere à estrutura e se faz guiar por referências que, na neurose, correspondem à crença no pai. Nas psicoses, a errância torna-se uma vicissitude decorrente da ausência desta função, quando o falante não consente em se deixar orientar.
O poeta, como não tolo, erra, se equivoca e vagabundeia pelo mundo e pela cadeia significante. A poesia, como forma de escrita que sabe que toda fala está aquém ou além da comunicação, ilustra e reconhece como a prática da letra converge com o uso singular do inconsciente pelo sujeito autor. O poema “O barco embriagado” de Rimbaud poderia ser entendido como metáfora da solidão e errância do poeta? Ou ainda como ancoragem do seu modo de gozo?
Arthur Rimbaud foi um poeta francês do século XIX que produziu suas obras mais famosas quando ainda era adolescente. Nasceu em Charleville, norte da França, abandonou a literatura pela vida de experimentação e viajou de forma intensiva por três continentes antes de morrer aos 37 anos de idade. Conhecido pela natureza errante e alma inquieta, Rimbaud escreveu o incrível Le bateau Ivre em 1871 aos 17 anos.
Segundo a análise do poema feita por Amélie Vioux , o eu designa tanto o barco quanto ele mesmo, como uma odisseia de um poeta adolescente à deriva. A viagem caótica pela qual passa o barco embriagado de Rimbaud,  metáfora de sua busca poética, imita através de seu ritmos e sonoridades os estados sucessivos do poeta exaltado com a euforia da partida, o naufrágio libertador e a constatação do fracasso. A experiência e a busca poética do próprio autor e embriaguez da liberdade rapidamente dão lugar ao desencantamento.
A viagem é uma longa metáfora de 24 quadras e o poeta representado pelo barco evoca sua passagem da infância à adolescência. Nas primeiras quadras descreve a euforia do contato com o mar, afirma o dinamismo e a energia do poeta, infância que se isola em seu próprio mundo e a ousadia e tempestades da adolescência. Ao deixar as penínsulas do rio rumo ao turbulento e caótico universo marinho, descreve a dança das ondas e a visão da fusão de céu e mar em uma constelação de palavras e neologismos.
Totalmente imerso no mar a ponto de não ser mais do que uma “ boia desbotada”, ele se abandona deslumbrado pela imensidão. As visões delirantes e as imagens enumeradas sem transição provocam as sensações pela sonoridade das palavras que as expressam, errância espacial, embriaguez poética, linguagem à mercê do movimento. “Quando finalmente a quilha se partiu ao meio e saí boiando em alto mar, percebi que estava livre, que a morte que sofrera havia me salvado”.
Se por um lado a errância pode levar ao pior, por outro aprendemos com a obra de Rimbaud e na descrição das visões e sensações do barco-poeta o deslizamento de significantes em uma embriaguez poética, uma linguagem própria, uma escrita autêntica. “O barco embriagado” além de representar a metáfora da errância de Rimbaud também ancora o modo de gozo do poeta, que se torna um marco da poesia moderna, influenciando artistas, escritores e músicos do século XX como Picasso, Allen Ginsberg e Patti Smith.
A nossa época caracteriza-se pelo lugar degradado do pai, pela hiperconexão, o gozo auto-erótico das redes sociais e a navegação virtual que produz jovens desbussolados, solitários e deprimidos. Solidão que advém da angústia da presença do objeto como aprendemos com Lacan. Minha questão é se ainda hoje a poesia, a música, as artes teriam esta função de ancoragem para estes sujeitos invadidos por infinitos objetos, como uma defesa, mesmo precária, diante desta excitação permanente.

Trecho de “Le bateau Ivre” (O barco Embriagado) In: Rimbaud por ele mesmo, Martin Claret Editora,  São Paulo, 2011, p.94

LA SAGNA, Philippe “Do isolamento à solidão pela via da ironia” In: Revista Curinga, 44, EBP-MG, 2017

LA SAGNA, Philippe. op. cit.p.74

RAMIREZ, Mário E. Errância e adolescência IN: Errâncias, adolescências e outras estações, org. Heloísa Caldas, Editora EBP, São Paulo, 2015, p.144

RAMIREZ, Mário E. op.cit, p. 141

VIOUX, Amélie IN: Le bateau Ivre- Rimbaud: Analyse, 2014. In:commentairecompose.fr/le-bateau-ivre/