O campo da transferência hoje
Maria Helena Barbosa
(EBP/AMP)
Mareo @mareorodriguez
No argumento elaborado para as Jornadas da EBP-SP[1], Daniela Affonso apresentou uma das perspectivas possíveis do tema na topologia que dá conta da constituição do sujeito – É também da dimensão estrutural da solidão que se trata na própria constituição do sujeito.
Alienação e separação são as duas operações, em relação a dois campos – do sujeito e do Outro, essencialmente envolvidas na constituição subjetiva.
Alienação é a primeira operação em que a conexão dos dois campos, reunidos, “condena o sujeito a só aparecer nessa divisão, (…) se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise”[2].
Dela resulta um sujeito dividido, dois campos e ele, sujeito, não se encontra nem em um, nem em outro. Em um está petrificado, reduzido a um significante, e no outro, em afânise, o movimento de desaparecimento qualificado como letal por Lacan.
“Como, desde este nível, o sujeito terá de se procurar?”, pergunta Lacan[3].
Ele responde a pergunta indicando que o sujeito, no estado original, é conduzido por essa dialética a uma segunda operação – separação. Esta se funda na interseção dos dois campos, oriunda do recobrimento de duas faltas que, uma, no campo do Outro, é encontrada nos intervalos do discurso e, outra, no campo do sujeito, é ele mesmo como objeto perdido, seu próprio desaparecimento. Na interseção das duas faltas é que reside a possibilidade de o sujeito interrogar-se e, ao se interrogar, engendrar-se.
Nela, “O sujeito – por um processo que não deixa de conter engano, representa essa torção fundamental pela qual o que reencontra não é o que anima seu movimento de tornar a achar – retorna então ao ponto inicial, que é o de sua falta como tal, da falta de sua afânise”[4]. Esta torção fundamental produz a extração do objeto a.
Lacan exemplifica com o fort-da: “Quer dizer que não se tem escolha. Se o pequeno sujeito pode se exercitar nesse jogo do fort-da, é justamente que ele não se exercita de modo algum, pois nenhum sujeito pode apreender essa articulação radical. Ele se exercita com a ajuda de um carretelzinho, quer dizer, com o objeto a. A função do exercício com esse objeto se refere a uma alienação, (…) [e] a repetição indefinida de que se trata, manifesta às claras a vacilação radical do sujeito”[5].
Por outro lado, sabemos que, quando não há falta, quando não há intervalo entre S1 e S2, há solidez. A cadeia significante primitiva em massa proíbe a abertura dialética. Lacan afirma que “Chegaria até a formular que, quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar”[6].
Neste seminário, na experiência, Lacan localiza o campo da transferência na operação separação – “Esta operação segunda é tão essencial de ser definida quanto a primeira, porque é aí que vamos ver despontar o campo da transferência”[7].
Lacan postula que “A transferência é impensável, a não ser tomando-se partida do sujeito suposto saber”[8]. Pressupõe a presença do recalque primário, da metáfora paterna, do Nome-do-Pai, do inconsciente estruturado como uma linguagem.
Neste seminário, Lacan não abordou a questão da transferência nas psicoses. No entanto, ele deixou algumas pistas que, articuladas, podem nos ajudar a pensar o campo da transferência hoje.
No Seminário XI, a definição de inconsciente como inadvertência se aproxima do engano, é da ordem da tapeação e tem uma finalidade significante, acrescenta significação. Na relação analista/analisando, o analista espera “esse efeito ocorrer na transferência no que ele se repete presentemente aqui e agora”[9], para então interpretar visando “a qual significante (…) ele [analisando] está, como sujeito, assujeitado”[10]. O inconsciente enquanto tal se localiza no tempo da segunda operação separação, assim como a transferência.
Por outro lado, E. Laurent, em seu pronunciamento Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência, no X Congresso da AMP, destacou um trecho de aula em que J-A. Miller marca a diferença na definição do inconsciente como inadvertência, já no último ensino. Nele, a noção de inconsciente pressupõe “um tempo anterior àquele em que [ele] o inconsciente pode aparecer, [tempo em que se situa] o bloqueio ou o deslizamento de palavra a palavra”[11].
Laurent propõe que “É neste contexto que uma nova versão da transferência positiva se introduz. (…) um novo uso do parceiro de gozo para ultrapassar os bloqueios da Inadvertência (Une-bévue) do sujeito confrontado com lalingua e com sua instabilidade, com seus deslizamentos permanentes: Lacan (…) a designa como um fazer-de-verdade (faire-vrai) – ‘A psicanálise é o que faz de verdade (fait vrai) (…) o analista (…). É ele quem ‘faz de verdade’ o bloqueio’”[12].
A hipótese que proponho é a de que, ao seguirmos por esta lógica, podemos concluir que o campo da transferência, no último ensino de Lacan, também se modificou. Ele, também, passaria a ser considerado em um tempo anterior, tempo que na topologia da constituição do sujeito corresponde ao da operação alienação.
Essa mudança de campo seria o que aplaina a transferência. Nele não há Outro enquanto tal e o sujeito se encontra no que Lacan nomeou de fading.
Neste campo a palavra não tem finalidade significante, o que explicaria considerar a interpretação como efeito de sugestão, um mínimo restante de efeito de linguagem, como desenvolve Miller, na nona lição do Seminário Perspectivas do Seminário 23 de Lacan.
A interpretação visa ao significante novo como explicitado no trecho que Laurent extrai do Seminário XXIV de Lacan: “Quando se apela a um significante novo, trata-se, de fato, de um significante que poderia ter outro uso, (…) um significante que seria novo não simplesmente porque assim haveria um significante a mais, mas porque, em vez de ser contaminado pelo sono, esse significante novo desencadearia um despertar”[13].
A perspectiva do tema, “Quem fala só tem a ver com a solidão”, aborda a questão da solidão como intrínseca ao parlêtre. Se tomarmos a solidão do Um como ponto de partida daquele que chega a uma análise, a entrada do campo do Outro pela presença do analista, em ato, produz um efeito real de sentido. Da mesma forma, Laurent aponta que o efeito de sentido real exigível da interpretação “presentifica um mais além da fala (…). Ela se vale da nova perspectiva do fechamento do nó em torno do acontecimento de corpo e da inscrição que pode ser notada como em um uso renovado”[14].