
Fonte: Jorge Oteiza “intención experimental”
Carmen Silvia Cervelatti (EBP/AMP/CLIPP)
“Transferência negativa é o verdadeiro ódio disfarçado de amor”[1]. Esta frase guiou o trabalho que desenvolvemos no Seminário de Leitura da CLIPP no segundo semestre de 2024, concluindo com a elaboração de Lacan no Seminário 20, a de que não se conhece nenhum amor sem ódio, junção escrita por ele numa só palavra, o amódio: “é o relevo que a psicanálise soube introduzir para nele inscrever a zona de sua experiência”[2].
A transferência analítica é uma relação de suposta confiança, é ter alguém “em boa conta”, é “ver alguém com bons olhos”. No entanto, e exatamente por isso, o analista fica sob suspeita, trata-se da transferência negativa, quando se “está de olho” em alguém, vigiando o outro.
A suspeita se manifesta quando não se está seguro e certo de algo ou alguém, quando há algo que não se sabe, porém se antecipa como mau, negativo. “A suspeita é um grau inferior de saber, é um saber não demonstrável porque não se dispõe de provas, e é tão insistente por causa desse motivo”[3], é sempre uma margem aberta, é uma crença, porém sustentada na desconfiança.
No Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, a transferência é um deles e o sujeito suposto saber, a transferência simbólica, diversas vezes foi apontada por Lacan como equivalente à positiva – sempre é importante frisar este ponto. O último capítulo, “Em ti mais do que tu”, é bastante esclarecedor sobre esse caráter moebiano das duas vertentes da transferência: Lacan aponta que o trabalho do dizer do sujeito em uma análise orienta suas palavras para a resistência da transferência, até o engano, engano tanto de amor como de agressão, de ódio. A frase “porque amo em ti algo mais que tu, eu te mutilo”, parece sugerir, diz Miller, que a possibilidade de resolução dessa dimensão do engano da dupla vertente transferencial se dá pelo atravessamento do fantasma que sustenta a transferência, quando o objeto a se separa de sua função de agalma da transferência[4].
Na experiência analítica é sempre possível uma viragem do agalma ao dejeto, da confiança para a desconfiança, do valor à desvalorização, da positiva para a negativa, sem que isso implique num corte – se dá num continuum. Há um risco presente na transferência analítica, especialmente quando alguém se encontra mais identificado com a posição de dejeto, porque as palavras ou mesmo o silêncio do analista, podem ser interpretados como referidos a essa posição.
O sujeito suposto saber vai na contramão da ignorância – a quem eu amo eu suponho um saber, enquanto que o ódio pode ser aproximado de uma de-suposição de saber – assim Lacan trabalha no Seminário 20. Amor e ódio são endereçados ao analista pelo analisante: trata-se de investimento libidinal. Miller disse tratar-se de afetos, sentimentos, “por isso parecem superficiais em face à estrutura que subentende esses fenômenos que se produzem na experiência analítica”[5], e dada a estrutura do Sujeito Suposto Saber, parecem de menor valor o âmbito dos sentimentos.
Rumo ao Imaginário – dos primórdios ao último ensino de Lacan
Nesse Seminário sobre a transferência negativa, vários textos foram discutidos, dentre eles os primeiros textos de Lacan, especialmente “A agressividade em psicanálise” [1948]. Para aproximar do tema do Imaginário é importante ressaltar que Miller observou que no estádio do espelho há simetria entre o amor e o ódio, mas há outra perspectiva; a de que o ódio é mais verdadeiro que o amor desde que o amor engana sobre a natureza do objeto que a imagem encobre, enquanto o ódio deixa de lado as aparências.
Lacan, no início de seu ensino, descreveu a transferência negativa. “Esse fenômeno representa no paciente a transferência imaginária, para nossa pessoa, de uma das imagos mais ou menos arcaicas que, por um efeito de subdução simbólica, degrada, desvia ou inibe o ciclo de uma dada conduta” [6], uma imago reprimida, construída durante a infância, que supostamente despertava a agressão do sujeito, bastando um pretexto mais fortuito, um pequeno detalhe para provocar a agressividade, reatualizando tal imago.
A concepção do ódio enquanto repúdio primordial do eu narcisista, que gera uma reação de desprazer, está presente no texto freudiano “A negação”: o Eu-Prazer originário “quer introjetar-se tudo que é bom e jogar fora [werfen] tudo o que é mau. Em princípio, o que é mau, o que é alheio ao Eu e o que se encontra fora dele é-lhe idêntico”[7]. Podemos dizer tratar-se de uma topologia, a do fora (o real, deixado no exterior) e do dentro (o representado, o subjetivo).
“O julgar é a continuação objetivada daquilo que originariamente é realizado de acordo com o princípio de prazer: a inclusão no Eu ou a expulsão [Ausstosung] para fora do Eu”[8], ligando a inclusão a Eros e a expulsão à pulsão de destruição. Lacan disse[9] que o real enquanto domínio que subsiste fora da simbolização é constituído pela expulsão, se enlaçam Real e Imaginário, chamado nesse texto de Freud de Eu-prazer.
O ódio “advém do resultado de Ausstossung, na fenda entre real e imaginário, e é estruturante para o sujeito”[10]. Diante dessas considerações é possível levantar a hipótese de que a transferência negativa também se situa nesse intervalo entre os dois registros e seu aparecimento é vivido pelo transbordamento do Real no Imaginário, fora do alcance do Simbólico, como a angústia, mais detidamente trabalhada por Lacan nos Seminários 10 e 22.
No Seminário 22 – RSI – Lacan localizou a tríade freudiana “inibição, sintoma e angústia”, no nó borromeano. A angústia é a nominação do Real e trata-se do transbordamento do Real sobre o Imaginário, fazendo com que ele, o Imaginário, entre no nó. Por isso há uma dimensão corporal da angústia: o interior do corpo fica presente no lado de fora, irrompe sobre a imagem narcísica, desarranjando o narcisismo[11].
O Imaginário no ultimíssimo ensino de Lacan não é o mesmo do Imaginário do Estádio do Espelho e do esquema óptico, no entanto não há como prescindir deles para trabalhar os últimos Seminários de Lacan e deles extrair consequências para a clínica psicanalítica.