EDITORIAL #15
NIRALDO DE OLIVEIRA SANTOS (EBP/AMP/ CLIPP)
Homero, Hobbes, Voltaire, Rousseau, Kant, Freud, Einstein, Lacan, Arendt, Kamper, Alexijevic, Miller, Brousse e alguns outros integram o time de peso epistêmico que os colegas da CLIPP escolheram para estabelecer um denso debate em torno deste tema tão antigo quanto atual: a guerra.
O que a guerra ensina à psicanálise? O que a psicanálise pode ensinar sobre a guerra?
O contundente texto de Bernadette Pitteri parte de uma articulação entre as ideias de alguns desses pensadores para mostrar que a própria estrutura da civilização, que ao engendrar uma perda de gozo para a convivência em sociedade, impõe um “conflito irreconciliável”. Deparar-nos com o fato de que o outro pode gozar mais do que nós evoca a agressividade e a pulsão de morte e aponta para o fracasso da sublimação. Nesta vertente, Bernadette destaca o Ideal e o Narcisismo como as fontes destes conflitos que assolam a humanidade desde a antiguidade. O vigor da discussão em torno do tema abordado em seu texto continua, de modo ampliado, no 3º episódio do Podcast da CLIPP, ocasião na qual Cláudio Ivan Bezerra entrevista Bernadette Pitteri. “O ser humano quer a guerra e erradicá-la é um sonho, um delírio, visto que a civilização não erradica a pulsão, tenta domesticá-la, sublimá-la, sem grandes êxitos – algo sempre escapa”, nos diz Bernadette.
Cerca de 90 anos após a correspondência icônica entre Einstein e Freud acerca da guerra, os pacifistas continuam trabalhando para que a guerra não seja o único caminho. É o que nos mostra Leny Mrech, que faz uma leitura atenta das missivas trocadas entre estes dois gênios. Frente à pergunta de Einstein: “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”, Leny nos mostra, em seu texto, que Freud delimita melhor o problema, situando o que há de radicalmente humano em torno da guerra, ao tempo em que também aponta para a existência de uma “intolerância constitucional” a ela, o que permite evocar tempos de paz.
Ao articular o tema da guerra ao da ética, José Wilson Braga Júnior retoma o Seminário 7 de Lacan para tecer uma articulação contemporânea entre a Guerra Fria e Guerra em curso entre Rússia e Croácia, destacando o trecho lacaniano “Não os perversos, mas os burocratas vão desencadear as coisas”. Frente a isto, Wilson questiona, com Lacan, as consequências funestas do real da pulsão de morte presentes nos “terríveis discursos do poder” que assolam a humanidade, tanto lá como aqui, tanto em outros tempos quanto agora.
Os textos de Maria Noemi Araújo e Cláudio Ivan Bezerra nos mostram, cada um a seu modo, o fenômeno das guerras atuais, travadas também no mundo digital. “Qual o lugar conferido às mulheres neste cenário?”. Seriam “Penélopes contemporâneas”, “refugiadas de sua feminilidade”, que aguardam o retorno de seus maridos e filhos enquanto tecem mortalhas? Ou entram também em guerra, seja colocando o corpo na batalha ou produzindo conteúdo para viralizar na internet? Cláudio Ivan, ao questionar o fascínio que as imagens da guerra despertam, evidencia a era da “iconofagia”, fenômeno contemporâneo de mão dupla, que faz com que os humanos devorem imagens ao mesmo tempo em que são por elas devorados, culminando em processos que fabricam “versões da verdade”.
Esta edição do Boletim Hades se encerra com um resumo da monografia de conclusão do Curso de Psicanálise da CLIPP, escrita por Cibelle Soares, com o tema “A psicanálise e a questão trans”. Aqui não se trata de uma guerra, mas de um confronto de ideias em torno do tema da transexualidade, que vale à pena conferir.
Ao seguirmos atentos às linhas e entrelinhas dos textos presentes neste número, podemos constatar, como nos mostra Marie-Hélène Brousse, que “não há guerra sem discurso, o que implica que a guerra não pode ser reduzida a manifestações naturais ou desencadeamentos de agressividade1”. Seríamos ingênuos se tomássemos o tema da guerra apenas como uma anomalia da civilização, posto que a guerra é uma das modalidades do laço social, e não o seu contrário. A guerra, nos diz Brousse, “faz parte do que chamamos de um ‘modo de gozo’ e obedece a um imperativo que pode ser descrito como superegóico, o que lhe confere seu caráter sombrio e feroz2”. A guerra evidencia o real do qual a psicanálise não recua.
Boa leitura!
1 BROUSSE, M-H. Présentation. “La psychanalyse à l’épreuve de la guerre” (sous la Direction de Marie-Hélène Brousse). Paris: Berg International, 2015, p. 8.
2 Idem.