Entrevista com Éric Laurent
O caderno Mais, da Folha de São Paulo, publicou no dia 30/11/08 uma entrevista com Éric Laurent, delegado geral da AMP (Associação Mundial de Psicanálise).
Leia a seguir o texto na íntegra.
Sinal vermelho
Discípulo de Lacan, Éric Laurent ataca a medicalização excessiva, mas adverte que a psicanálise precisa estar atenta às mudanças do século 21 |
FABIOLA RAMON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
Um dos principais nomes da psicanálise mundial, o francês Éric Laurent, discípulo direto de Jacques Lacan (1901-81), defende que o método criado por Freud “é um discurso de crise, não de conformismo”.
Por isso, ao contrário do que dizem seus detratores, ele está vivo, contrapondo-se à febre dos medicamentos tarja preta e pode ajudar os indivíduos a atravessar o atual momento de instabilidade por que passa o mundo.
Laurent, que participou da fundação da Escola da Causa Freudiana, em Paris, nos anos 1980, é autor de, entre outros, “Sociedade do Sintoma” (ed. Contracapa, 2007).
Nele denuncia o que chama de “medicalização da existência”, mas admite que um tratamento analítico de longa duração não é indicado para todos e aponta a necessidade de a psicanálise estar atenta às transformações do século 21.
Leia a seguir a entrevista concedida à Folha em seu consultório, em Paris.
FOLHA – A psicanálise ficou conhecida como um método longo e caro. Em um mundo que demanda respostas rápidas e tratamentos breves, ela não está fadada ao fracasso?
ÉRIC LAURENT – Ela não estabelece prazos, é uma maneira de refletir sobre a vida e os impasses da existência.
Após a Primeira Guerra, em 1918, percebendo que o conflito havia arruinado a Europa, Freud propôs a abertura de centros psicanalíticos gratuitos. Concomitantemente, houve a disseminação da idéia de que somente a burguesia podia pagar uma análise.
Ainda hoje percebemos estes dois movimentos: tratamentos que se endereçam à classe média -quando se busca um psicanalista em um consultório, é fácil encontrar um- e centros de atendimento gratuitos -aos quais as pessoas podem recorrer nos momentos de instabilidade dos laços sociais.
É preciso questionar a idéia de que a psicanálise é um tratamento longo e caro. Ela é uma aventura pessoal e deve ser vista como uma história de amor.
Assim é a psicanálise: a cura como aventura pessoal.
FOLHA – Muito se diz que a psicanálise está em crise. O que ela pode oferecer, então?
LAURENT – A psicanálise pode ser algo útil às pessoas decepcionadas com fabricantes e vendedores de felicidade. A única dignidade dela é estar em crise desde sempre.
É um discurso de crise, e não de conformismo, de conforto, de tranqüilidade.
Estamos justamente atravessando a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz.
São momentos nos quais a angústia nos atravessa e nos remete a escolhas e a saber o que nós queremos do mundo que virá. O que queremos para amanhã? O século 21 será apaixonante, sem dúvida tão terrível quanto os anteriores, mas, visivelmente, de uma maneira nova. E será necessário estar atento a essas novidades.
A psicanálise deve ajudar a compreendê-las.
FOLHA – Por que hoje há uma busca imediata pela felicidade?
LAURENT – Todo mundo quer ser feliz. Essa é uma demanda que se tornou legítima após o iluminismo, quando, contrariamente à religião, o próprio pensamento abriu a possibilidade de uma felicidade terrestre, e não somente uma salvação eterna.
O primeiro Estado moderno, os EUA, incluiu no início de sua Constituição a busca da felicidade como um pedido legítimo.
No entanto conhecemos, ao longo desses dois séculos, diferentes atitudes para entender por que é que os humanos não a encontram.
Uma delas é: “Porque as pessoas têm maus hábitos, vamos mudar seus comportamentos”, abordagem difundida pelo comportamentalismo desde 1950, com Skinner [psicólogo norte-americano], que dizia que a liberdade é um luxo que a humanidade não pode ter, pois, se as pessoas fazem o que querem, elas terão maus hábitos.
Isso aconteceu ao mesmo tempo em que se realizava o comunismo, que queria mudar os comportamentos e proporcionar a felicidade ao homem “novo”. Ambos configuraram uma gestão autoritária das atitudes em nome do bem-estar.
Nos anos 1960, ao contrário, houve uma liberação, as pessoas rejeitaram a servidão autoritária.
Atualmente, há retrocesso, buscando mudar atitudes com a volta da burocracia sanitária.
Donde a idéia da gestão de populações: câmeras de vigilância, identidade biométrica -isso é um sonho para um administrador. Com o melhor conhecimento e o mapeamento da população, podemos enquadrar as pessoas em categorias de gênero, idade, raça etc.
FOLHA – O que o sr. entende por “medicalização da existência”?
LAURENT – Michel Foucault [filósofo francês] mostrou que a medicina contemporânea trata de populações. Ela não trata mais um por um, como era no século 19. Hoje, ela é “baseada em evidências” e se fundamenta em estatísticas para produzir categorias homogêneas.
Nesse modelo, é necessário desconsiderar a particularidade dos casos, o que combina com a medicalização de toda a existência. Por exemplo, o comportamento no trânsito, a maneira de fumar, a forma do amor, com sexo ou não.
São termos abordados como problemas epidemiológicos: o tabaco, a droga, a violência familiar etc.
Questões antes deixadas ao sistema jurídico, até então tidas como de ordem individual, são agora apropriadas pela gestão das populações e pela medicalização da existência.
FOLHA – E as doenças que crescem cada vez mais, como a depressão, por exemplo?
LAURENT – Desde que a medicina afirmou que 25% de pessoas podem tornar-se deprimidas, colocou-se um problema de evolucionismo.
Como a espécie humana pode sobreviver e conservar uma disposição fatal que faz com que um quarto das pessoas possam ter algo que as deixe deprimidas?
Ou bem a categoria é muito grande, ou temos um problema, o que mostra o limite dessa abordagem.
FOLHA – O sr. acha que há um abuso de medicação?
LAURENT – As pesquisas realizadas pelos laboratórios farmacêuticos indicam efeitos formidáveis das medicações.
Por outro lado, estudos feitos por sistemas de saúde mostram que, na maior parte dos casos, eles não são tão bons assim, como o do Instituto Nacional de Saúde Mental (EUA), que, no último estudo publicado, apresentou que os antidepressivos, na maioria das vezes, eram pouco superiores aos placebos.
Algumas vezes atingem objetivos contrários. Então, somos obrigados a colocar uma tarja preta na caixa alertando sobre os riscos. Sabemos também que os jovens que passam ao ato assassino nos EUA freqüentemente já foram medicados.
Os medicamentos estão em todos os lugares, somos “a civilização da medicação”. Se você vai a Pequim ou a qualquer outra cidade verá que o corpo está casado com eles nos aspectos mais ordinários da vida [Viagra, analgésicos, estimulantes etc.].