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ESTAMOS TODOS, POSITIVAMENTE, ESGOTADOS

O sujeito do desempenho acaba entregando-se à coação livre a fim de maximizar seu desempenho. Assim, ele explora a si mesmo. Ele é o explorador e ao mesmo tempo o explorado, o algoz e a vítima, o senhor e o escravo. O sistema capitalista mudou o registro da exploração estranha para a exploração própria, a fim de acelerar o processo.”1

Daniela de Camargo Barros Affonso (CLIPP/ EBP/ AMP)

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Dançando e cantando, a “tiktoker” sarada e seminua relata, sorrindo, a depressão, a ansiedade, os abusos sofridos, ao mesmo tempo em que comemora o aumento do número de seguidores. Dancinhas como esta, retratando experiências e situações muitas vezes de sofrimento, invadem as telas de milhões de espectadores das redes sociais.

Em Sociedade do cansaço, o filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han vê delinear-se uma mudança de paradigma entre uma sociedade marcada pela negatividade de um modelo imunológico para uma sociedade marcada pelo excesso de positividade. O século passado foi caracterizado por uma divisão nítida entre o dentro e o fora, o amigo e o inimigo, o próprio e o estranho2. A alteridade, signo do estranho, antes afastada ou eliminada, agora é substituída pela diferença à qual falta o “aguilhão da estranheza”. Além disso, acrescenta o autor, a estranheza se neutraliza numa fórmula de consumo.

A transição de que se trata é a de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do desempenho; de uma sociedade em que explorador e explorado distinguiam-se claramente, cada qual de um lado, para uma em que se afigura o sujeito do desempenho, livre da instância de domínio exterior que o obrigue ao trabalho e o explore. “Mas a supressão da instância de domínio externa não elimina a estrutura de coação”, diz o autor. “Ela, antes, unifica liberdade e coação. O sujeito do desempenho acaba entregando-se à coação livre a fim de maximizar seu desempenho”, conclui.

A sopa de letrinhas em que estamos mergulhados, TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), TPL (Transtorno da Personalidade Limítrofe), SB (Síndrome de Burnout), remete a afecções ligadas a um excesso de positividade.

Ascende o “homem empresa”3. Sai de cena a “ética da abnegação” e entra o “sujeito ativo”, que busca a “autorrealização”: temos que nos conhecer melhor, nos amar, nos valorizar, para sermos bem-sucedidos. O modelo é o da superação de limites, visando à máxima eficiência num regime de concorrência em todos os níveis.

O sujeito concebido para a máxima realização requer um discurso gerencial que implica múltiplas técnicas. A fonte de eficácia deve estar no próprio indivíduo e não numa autoridade externa.

O discurso capitalista levado ao paroxismo, ao mesmo tempo em que acarreta uma relação perversa com o objeto, baseada na ilusão do gozo total, produz um sujeito que tende a tornar-se ele próprio um objeto que vale pelo que produz e será descartado quando sua performance for insuficiente. Os indivíduos, livres das tradições, devem se autorreferenciar. Cada vez menos se prejulga a eficiência do sujeito por símbolos como diploma, status ou experiência. O que vale é o desempenho avaliado continuamente.

É nesse sentido que o neoliberalismo quer superar a contradição entre os valores hedonistas do consumo e os valores ascéticos do trabalho, liquidando o conflito entre as exigências da pulsão e as da civilização, em termos freudianos. A empresa passa a ser o modelo geral a ser imitado, uma “maneira de ser”, em que toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu a ser transposto para todos os âmbitos da existência.

O excesso de positividade a que se refere Byung-Chul Han se manifesta através de um excesso de estímulos, informações e impulsos, modificando radicalmente a estrutura e a economia da atenção, fragmentando-a e a destruindo. As exigências atuais do capitalismo levam à necessidade do desenvolvimento de técnicas de realização de diversas tarefas simultaneamente, a multitasking. Para Han, a multitarefa gera uma atenção ampla, mas rasa, caraterizada pela rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. Inevitável pensar na mudança frenética de informações que o passar de nossos dedos no smartphone proporciona. A “atenção rasa” a que se refere o autor pode muito bem ser um dos fatores responsáveis pela disseminação vertiginosa das fake news. Já não importa se esta ou aquela informação condiz com fatos ou guarda alguma veracidade, mas sim imaginarmos que estamos bem informados.

A consequência desse “excesso de positividade” é o mais absoluto esgotamento. Estamos todos, positivamente, esgotados. Tal esgotamento, ainda segundo Han, impede qualquer processo criativo e leva à depressão dos tempos atuais. O depressivo é aquele que explora ao máximo a si mesmo e se lamuria de que nada é possível numa sociedade que acredita que nada é impossível.

A pandemia e seus efeitos, sobretudo com a instituição preponderante das práticas “on-line”, exacerbaram a níveis inimagináveis a tendência à multitarefa, à hiperatividade ilimitada. A possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, de participar de eventos, reuniões, “lives”, sem sair de casa, tem contribuído imensamente para este esgotamento.

Na positivação da sociedade o homem se transforma numa “máquina de desempenho autista” que o leva a um “cansaço solitário”, num enfraquecimento dos laços sociais. Éric Laurent4 refere-se à efemeridade do novo em nossa civilização. O novo dura cada vez menos e este modo de funcionamento é um dos nomes das formas contemporâneas da pulsão de morte. Os vínculos também estão marcados por esta obsolescência do novo, esclarece o autor, especialmente difundido nas redes sociais, em que há a busca desenfreada de novidades e novas formas de viver propostas pelos influencers.

Para Ram Mandil, a disponibilidade do livre acesso à informação e à desinformação pela internet não produz necessariamente um incremento do desejo de saber. “Muitas vezes”, afirma, “o que se verifica é uma retração desse desejo ou ainda o favorecimento de uma satisfação autoerótica na relação com o saber”5.

De que forma se insere a psicanálise neste contexto?

Na conjuntura da queda do falocentrismo, seja na vertente imaginária – símbolos de poder perdem força – seja na simbólica, em que não se joga mais o jogo promovido pelo falo como o significante que remete à falta e localiza o desejo, não mais haveria possibilidade da existência da psicanálise. Byung-Chul Han segue este raciocínio. Em um dos capítulos de seu livro, discorre sobre como o aparato freudiano, baseado na sociedade disciplinar, já não se aplica ao sujeito pós-moderno:

O verbo modal que define a sociedade do desempenho não é o ‘dever’ freudiano, mas o poder hábil (Können). Essa mudança social traz consigo uma reestruturação também no interior da psique. O sujeito do desempenho pós-moderno possui uma psique bem diferente do sujeito obediente, abordado pela psicanálise de Freud. O aparato psíquico de Freud é dominado pelo medo e angústia. Mas isso já não se aplica ao sujeito de desempenho da pós-modernidade. Esse é um sujeito da afirmação. Se o inconsciente estivesse necessariamente ligado com a negatividade da negação e da repressão, o sujeito de desempenho neoliberal já não teria inconsciente. O inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É uma produção da sociedade disciplinar repressiva, da qual nós estamos nos afastando cada vez mais.”6

Han parece desconhecer os esforços da psicanálise no sentido de se manter “à altura da subjetividade de sua época”. Miller, mais do que advertido disso, demonstra como a mistura explosiva do discurso da ciência e do capitalismo rompeu os fundamentos mais profundos da tradição7. Neste mesmo contexto, Miller afirma a necessidade de deixar para trás o século XX para renovar a prática psicanalítica no mundo. Discorre sobre o desarranjo da ordem simbólica, apoiada pelo Nome-do-Pai, lembrando como o próprio Lacan rebaixou sua função, ao longo de seu ensino, acabando por fazer dele nada mais do que um sinthoma.

No sentido de empreender tal renovação da prática psicanalítica, Miller recorre ao conceito de real desenvolvido por Lacan, enfatizando que este nem sempre o utilizou da mesma forma. Se antes o real se chamava “natureza” – o que permitiu a Lacan dizer, no Seminário 11, que “o real volta sempre ao mesmo lugar”, agora há uma grande desordem no real, representada pelo aforismo lacaniano, encontrado no Seminário 23, “o real é sem lei”. Miller assim resume: “O real é afetado por todos os lados segundo os avanços do binário capitalismo-ciência, de maneira desordenada, arriscada, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia”8.

E indo exatamente ao encontro da crítica que faz Byung-Chul Han à psicanálise, mas para ir além dela, Miller assevera que a psicanálise transcorre no âmbito do recalcado e de sua interpretação graças ao sujeito suposto saber, mas que, no século XXI, trata-se de a psicanálise explorar a dimensão da defesa contra o real sem lei e fora do sentido. Dessa forma, conclui Miller: “O inconsciente lacaniano, o do último Lacan, está no âmbito do real, e diremos por comodidade, ‘abaixo’ do inconsciente freudiano, de modo que, para entrar no século XXI, nossa clínica deverá centrar-se na desmontagem da defesa, desordenar a defesa contra o real”9.

Proponho pensarmos que uma das formas de defesa contra este real desordenado nos tempos atuais é o excesso de positividade de que nos fala Byung-Chul Han. Trata-se de uma certa configuração de temporalidade, aquela do imediatismo, da hiperatividade, da multitarefa, do fazer incessante, enfim, do esgotamento derivado de um excesso de crença no autodesempenho, no si-mesmo como ferramenta para a construção do homem-empresa.

Não será se utilizando desta temporalidade que a psicanálise poderá desmontar essa defesa, como sugere Miller. Parece-me, assim, que é justamente por meio de outra temporalidade que a psicanálise pode caminhar. Não sucumbir ao excesso de positividade certamente é o que pode proporcionar à psicanálise permanecer êxtima ao discurso da época, permitindo ao psicanalista direcionar sua escuta para além do homem-empresa e sua positividade mortífera.

1 Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petropólis, RJ: Vozes, 2017, p. 105.

2 É interessante notar que o autor se utiliza do modelo imunológico para caracterizar a negatividade do século passado, que estaria em declínio. Escrita em 2010 e, portanto, ainda distante da pandemia de coronavírus que assolou o planeta, a obra, contudo, ao meu ver, ganha ainda mais força, na medida em que, apesar da tragédia, o novo modelo da “positividade” parece ter-se fortalecido ainda mais.

3 Dardot, P. e Laval, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. SP: Boitempo, 2016.

4 Laurent, Éric. Conferência proferida na abertura do X Enapol. Notas próprias.

5 Mandi, Ram. “Escola, cartel e passe”. In: Cartel, novas leituras. Nohemí Ibañez Brown (organizadora). São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021, p. 100.

6 Han, Byung-Chul. In: Op. Cit., p. 80.

7 Miller, J.A. “O real no século XXI”. In Scilicet – Um real para o século XXI. Ondina Machado, Vera Lúcia Avellar Ribeiro (organizadoras). Belo Horizonte: Scriptum, 2014.

8 Ibidem, p. 29.

9 Ibidem, p. 31.