Marizilda Paulino
O que é a psicanálise a não ser sua clínica?
Desde Freud aprendemos que o principal instrumento de nossa prática é a clínica. É ela quem nos guia em relação à elaboração de conceitos, quem nos permite uma ação. Freud relatou cinco casos clínicos, evidenciando suas particulares. Lacan elevou-os à categoria de paradigmas psicanalíticos. O que seria da histeria sem Dora, da neurose obsessiva sem o Homem dos Ratos, da psicose sem Schreber, da fobia sem o pequeno Hans e o que falar então sobre os ensinamentos produzidos a partir do Homem dos Lobos?
Nosso objetivo nessa Conversação diz respeito a como se constrói um caso clínico. Como pensar clinicamente o caso que temos à nossa frente, como elaborar um relato para a sua apresentação entre analistas e entre não-analistas, qual, enfim, a especificidade da orientação lacaniana na construção de um caso clínico.
Éric Laurent em seu artigo “O relato de caso, crise e solução” [1] aponta que há uma crise no relato de caso, na medida em que ‘não se sabe mais muito bem como redigi-lo’, e isso designa um mal-estar. Como a psicanálise não é uma ciência exata, o relato de um caso não pode ser objetivo. Tem-se, então, que buscar um modo próprio à psicanálise para o relato e a classificação de um caso, sua nomeação. “Nomear o caso, a exigência de bem-dizer, é um dos nomes da lógica da experiência analítica. Ela orienta o dizer do analisante, sua transferência e o dizer interpretativo do analista”, diz ele.
Laurent apresenta brevemente a evolução do relato de caso desde Freud até nossos dias. No início, o relato do caso freudiano tem como modelo o romance. Freud conseguia dar uma forma narrativa à estrutura, utilizava os sonhos e suas associações, como no caso Dora, por exemplo, para dar conta da experiência da análise original.
Na virada dos anos 20, ao invés das associações em relação aos sonhos, os psicanalistas lidam com o sintoma. Os casos clínicos vêm dar conta das dificuldades de cada um, os autores fazem coincidir seus relatos com suas práticas. O relato de caso passa a narrar um fato memorável, transmissível e não mais um destino do sujeito.
M. Klein inventa uma nova narração: sessão por sessão, fala do ‘material’ da sessão e, com isso, a manifestação da ‘materialidade’ do inconsciente e a demonstração do ‘saber-fazer’ do analista. O relato do caso de uma psicanálise de uma criança, conduzida em 1940, é uma verdadeira monografia.
O relato do caso evolui para uma vinheta a fim de ilustrar um aspecto parcial da psicanálise.
É nesta crise que Lacan propõe um método a partir de sua tese de psiquiatria: método jasperiano e em torno do conceito de personalidade, almejando a publicação de monografias exaustivas sobre um caso para testemunhar a verdade do sujeito.
A passagem de Lacan para a psicanálise faz com que abandone esse método exaustivo e parta para a coerência do nível formal onde o sintoma se estabelece. À medida que torna lógico o inconsciente, o relato do caso vai em direção ao envelope formal do sintoma, concebido como um tipo de matriz lógica.
Mas não basta enfocar o envelope formal do sintoma. É necessário que o sujeito “reconheça o lugar que ele ocupou” nisso. Esse é o lugar do desejo, como diz Lacan e, será, ao modificar a sua teoria do sintoma, o lugar do gozo. “A construção formal gira em torno de um impossível, que inscreve um lugar vazio em reserva: S de (A) barrado.”
Esse lugar – S de (A) barrado está em jogo no tratamento e também na comunidade analítica, na medida em que o relato de caso comporta as formas das diferentes comunidades de trabalho psicanalíticas. Mas, é na distância em relação aos modelos que podemos perceber a qualidade do trabalho de cada um. “O caso clínico é, neste sentido, tanto inscrição como afastamento.”
Para Lacan, no passe cada um sustenta a demonstração de seu próprio caso. “Esse dispositivo, no qual se conta seu caso, no fim de análise, como uma boa história, tem a estrutura do chiste. Ela radicaliza a enunciação de cada um.”
O discurso universitário, por sua vez, vê a solução no apagamento da enunciação na língua e busca uma língua clínica única, na tentativa de uma troca entre analistas. Mas isso só faria apagar o desejo do analista que atualizou um fato clínico como tal.
O discurso analítico é que pode propiciar a saída para a crise sobre o relato do caso. “ É preciso atualizar uma clínica dos sintomas, estabelecida por cada sujeito … [e] isso supõe manter vazios os lugares ocupados pelo prêt-à-porter das classificações segregativas, para dar lugar a verdadeiras distinções, uma por uma.”
A solução para a crise do relato de caso está na diversidade das vias na qual cada um se defronta com o real em jogo em cada caso e responde a ele com suas particularidades.
Pierre Malengreau, em seu artigo “Nota sobre a construção do caso”[2], parte da questão colocada por Éric Laurent na Lettre mensuelle [3], 198.
Existe uma maneira, própria à psicanálise, de falar de seus casos?
A clínica psicanalítica supõe uma abordagem do caso que inclui a orientação da experiência em direção ao real, que é a experiência de um real que se esquiva.
Temos duas dimensões do real que se conjugam nessa definição: o real como encontro e o real como fora do sentido. E isso supõe a inclusão da contingência na sua própria construção.
Lacan em um artigo, traduzido como “Abertura da seção clínica” [4], diz que “A clínica psicanalítica deve consistir não somente em interrogar a análise, mas em interrogar os analistas, a fim de que eles dêem conta do que a prática deles tem de acaso, o que justifica que Freud tenha existido.”
Que lugar damos ao real no modo de relatar nossos casos?, pergunta-se Malengreau.
A partir de uma nota [5] de J.-A. Miller na Conversação de Arcachon, podemos desdobrar a questão e abordá-la por duas concepções da clínica: a de uma clínica objetiva que se apóia sobre o que se observa, usa o significante-mestre para fins de identificação. A noção de gozo, nesse caso, se transforma em instrumento de observação apenas; e a de uma
clínica demonstrativa que se apóia sobre um modo de construção do caso que leva em conta a impossibilidade de se dizer tudo. É fundada sobre a temporalidade freudiana doaprès-coup e tem necessidade de instrumentos que dependem da lógica e não mais de métodos de observação.
A experiência analítica é, de início, uma experiência de seriação dos significantes que importam para o sujeito, ou seja, a colocação em série daquilo que importa para o analisante. A construção do caso passa por essa localização. Mas isso não é especificamente psicanalítico, pois descrever a ordem simbólica não é próprio de uma prática orientada em direção ao real e poderia nos levar, como diz Lacan, ao “engano comum da compreensão” [6].
Se quisermos cercar mais de perto o real em nossa práxis devemos apontar a falta de um significante na cadeia dos significantes que determinam o sujeito e que essa falta não é acidental.
Nesse ponto uma teoria das seqüências pode nos servir para a construção do caso que convenha à psicanálise. Essa articulação é desenvolvida por J.-A. Miller em seu “Homólogo de Málaga”, traduzido para o português com o título: “A lógica na direção da clínica psicanalítica” [7], publicada em 1994.
J.-A. Miller distingue dois tipos de seqüência: uma seqüência normal que vamos extrair de um todo, uma seqüência sem surpresas; e uma seqüência que se autoriza de uma aproximação entre a lógica do tratamento e a posição feminina. Apóia-se na falta do não-todo lacaniano, que é o não-todo ‘indecidível’ [8] e não na falta de um elemento em um conjunto. Essa seqüência comporta uma incógnita, um buraco na própria seqüência.
A construção do caso em psicanálise poderia encontrar aí um assento lógico: teria de construir uma seqüência que fizesse aparecer, nela mesma, a parte indizível que comporta e não a falta de um termo. A seqüência que conviria, portanto, à psicanálise seria a que incluísse a parte inusitada da experiência. Os testemunhos de passe poderiam servir de exemplos para nossas construções.
A Escola supõe uma clínica demonstrativa, que é oposta à clínica objetiva. A clínica objetiva espera do parceiro amor e reconhecimento, enquanto que a clínica demonstrativa inclui a interlocução, convida para a conversação e oferece ao debate um material seqüencial que a torna possível. Ela se inscreve em uma transferência de trabalho.
Texto elaborado para a Conversação Clínica da Clipp
19 de junho de 2004