Carlos Ferraz Batista (CLIPP)
Segundo Cunha (2021), “uma psicanálise parte de um ponto de não saber e desemboca em outro que também não tem correspondência com o saber”. Essa assertiva abre a via da invenção frente ao real e o desafio torna-se maior quando o encontro com o real é derivado da passagem ao ato.
Partimos da seguinte questão: o que poderá ser feito quando uma passagem ao ato culmina em assassinato, e o sujeito ao passar pelos meandros da justiça é considerado inimputável (segundo os preceitos da Psicanálise), perdendo a posição de sujeito de direito e de desejo?
Para pensarmos nossa questão, elegemos a autobiografia de Louis Althusser , pensador pós-marxista, de contribuição significativa e reconhecida mundialmente. Antes da passagem ao ato, Althusser estava em processo de análise, e seu analista recomendou uma internação hospitalar. Mas sua esposa Helène dissuadiu o analista e se comprometeu a cuidar de Althusser: os dois ficaram em casa, sem se relacionar com outras pessoas. Em sua autobiografia, Althusser relata: “No domingo 16 de novembro às nove horas, tirado de uma noite impenetrável e na qual desde então nunca pude penetrar, encontrei-me ao pé de minha cama, de roupão. Helène deitada à minha frente, eu continuando a lhe massagear o pescoço, com a sensação intensa de que meus antebraços estavam doloridos. Depois compreendi, não sei como, a não ser pela imobilidade de seus olhos e daquela pobre pontinha de língua entre os dentes e os lábios, que ela estava morta”. Percebe-se a experiência crepuscular acompanhada do ato, não havendo registro psíquico, como se o ato não tivesse existido. Há ato sem sujeito, em que o objeto obscurece o sujeito.
Na passagem ao ato, o sujeito está elidido, fora da cena, na posição de morto. Há vacuidade após o ato, ausência significante, encontro com o nada, com o real. Neste contexto, é oportuna a formulação de Lacan (1967-1968) que esclarece o movimento do sujeito, após a passagem ao ato: “A passagem ao ato é aquilo além do que o sujeito reencontrará sua presença como renovada, mas nada mais”. Um ato sem dizer, um ato em si, sendo no só-depois que o sujeito poderá ou não significar. Após a passagem ao ato, o sujeito não é mais o mesmo, afinal seu modo de gozo é explicitado.
O relato de Althusser é paradoxal, no que diz respeito ao ato, sendo um dizer, que não se sabe o que diz e que não pôde ser enunciado. Revela a foraclusão significante, evidenciando a posição subjetiva. Para Miller (2014), no que se refere ao ato, mais especificamente, à passagem ao ato, “O sujeito se subtrai, digamos aos equívocos da fala como a toda dialética do reconhecimento; ele coloca o Outro em um impasse, e é por aí que o propósito do ato propriamente dito não é cifrável”. Essa assertiva coaduna ausência de palavras e de sujeito, e marca a presença do real.
Pode-se pensar que a passagem ao ato veio no lugar da impossibilidade do dizer que, no caso de Althusser, não pôde expressar sobre o que supostamente o estava angustiando. Em sua autobiografia, o significante “impronúncia” se apresenta de forma prevalente. Com o assassinato, Althusser foi condenado à impronúncia, considerado inimputável, proibido de lecionar e publicar. Queixa-se de não ter passado pelos meandros da justiça, não obtendo uma pena. A morte pela impronúncia foi uma pena perpétua, duplamente vivenciada – por ser considerado inimputável, não pôde falar em juízo sobre o acontecido. Ao ser impedido pela justiça de lecionar e publicar, lhe foi subtraída a possibilidade de buscar uma possível interlocução com o Outro e talvez, restaurar o laço social. Mesmo proibido de publicar, Althusser escreveu uma autobiografia e deixou-a guardada em sua casa.
A escrita de uma autobiografia poderia ser considerada como uma tentativa de Althusser em dizer sobre o indizível? Algo de si que poderia ser incorporado, um reconhecimento do modo de gozo? Entendemos sua escrita autobiográfica como um reencontro de sua presença renovada.
Fazendo uso do conceito passagem ao ato, o encontro com o real e extrato da autobiografia de Althusser, poderemos fazer uma transposição para atuação na clínica?
Na passagem ao ato, a declinação do ato é de importância. Servindo-me do que Laia (2001) afirmou sobre o uso da escrita para Joyce, me parece possível afirmar que, em uma passagem ao ato, também é importante localizarmos o que ela diz sobre o modo de gozo de um sujeito. Assim, uma análise poderá fornecer um lugar de escuta para que o sujeito consiga discorrer sobre a experiência traumática decorrente da passagem ao ato e localizar esse modo de gozo para que se possa bordejar o real, de modo que o sujeito consiga apresentar o dizer que lhe era impronunciável, por ocasião da passagem ao ato. Essa diretriz poderá favorecer uma responsabilização subjetiva. Nossa aposta é de que talvez viabilize um saber-fazer com os efeitos e consequências da passagem ao ato.