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Pequenos Assassinatos

Durval Mazzei
São Paulo, SP
Indignação

O filme “Pequenos assassinatos” (1971), filmado após o sucesso da peça de Feiffer, é pouco anterior à escritura, por Lacan, do discurso capitalista (1972).

Essa comparação parte de um ponto.

Se Lacan, no XVII, foi decisivo ao dizer que a ordem das ‘letrinhas’ não mudava e 3 anos após mudou, o que lhe passou? Que a cultura mudava radicalmente? Que as novidades da ciência mudaria o laço social? Se bem que o início dos anos 70 é diferente do tempo atual já se perceberia que, tanto na perspectiva existencial singular (início da nanotecnologia, biotecnologia, informática e cognitivismo) quanto no entretenimento (objetos baseados na quadra tecnocientífica anterior e voltados à diversão isolada), a cultura apontava que pouco ficaria como antes. Tais transformações são claras na cena contemporânea. A medicina visa da imortalidade à procriação perfeita e os seres olham mais aos celulares que ao outro.
O filme, onde há telefones fixos, apresenta, desde a cena inicial, novidades: uma mulher ‘mignon’, em seu apartamento, ouve uma gritaria e um homem ‘grandão’ apanha sem nenhuma resistência de um grupo de rapazes. Desce, enfrenta o grupo e questiona a inação do sujeito. Um fotógrafo que declara sua indignação e o fracasso de ideais que o faz não reagir a nada. E conta que fotografava pessoas, passou a objetos e hoje fotografa cocô! Do ideal do belo corpo, vai ao resto, ao escatológico e repugnante, mas um objeto, o cíbalo. Um tiro ecoa na cena e um transeunte cai baleado. O casal procura esconder-se como se fosse uma ocorrência comum!

O filme segue como qualquer comédia romântica: Patsy apaixona-se por Alfred. Alfred, entretanto, não é nenhum herói desse rol. Continua em sua indignação que o fez trocar pessoas por cocô. Ela não desiste. Quer de qualquer maneira demonstrar que tudo está em seu devido lugar e que o amor é viável. Patsy representa a dignidade e não segue o mestre contemporâneo, aposta no mestre da tradição. Tal diferença entre sujeitos é observada na clínica atual.

Apresenta-o à sua família. Família convencional com pai trabalhador de sucesso, mãe dedicada à vida doméstica. O novo está presente: as brincadeiras ‘masculinas’ acontecem entra ela e o pai, mestre tradicional, e fica brava que o irmão mais novo mexeu no que restava de suas roupas na casa paterna, fato que denota a curta visão deste pai. Faz valer o bordão de antiga comédia nacional “tem pai que é cego” transformado para “o pai não vê mais nada”.

Não há efeito em Alfred. Vai, então, explorar o passado dele crendo que sua apatia será solvida. Patsy crê que marcas singulares no estilo de Alfred, construídas na história, determinam o que acontece. Não vê a indignação do amado como uma posição diante do que acontece no mundo, mas um efeito dos laços pretéritos. Obriga-o a rever os pais de quem não havia e não dava notícias desde os 17 anos, quando saíra de casa. Patsy elabora perguntas sobre a infância e a história de Alfred, para interrogar os pais. Há o encontro. Este é hilário: os pais caracterizados como intelectuais liberais, respondem a cada pergunta sobre a amamentação, sobre o contato com pai e mãe, sobre o desenvolvimento citando Freud, Adler, Ferenczi, Erikson incapazes de falar sem citar, negando a experiência de pais responsáveis. Outro fracasso. Patsy não desiste e consegue um gol pela via do sexo.

Enfim, a vitalidade de Alfred retorna. Casam-se na igreja “Primeira Existencial”, pois Alfred, ateu decidido, não aceita referência a Deus. O padre prega o ateísmo e revela à plateia a confissão sobre a sexualidade do irmão de Patsy, indicando que é uma via sexual válida. A cerimônia termina em pancadaria. À saída, outro tiro e nova morte.

Vão viver juntos, na casa de Patsy e Alfred mais vívido e feliz. Dois dias após, quando abraçados em preliminares sexuais, mais um tiro e Patsy cai morta! Alfred é imediatamente tomado pela perplexidade apática e, ensanguentado, vai de metrô à casa dos sogros. Nenhuma alma o interpela ou pergunta o que lhe ocorreu. Todos estão entretidos no mundo privado e sem Outro.
O filme termina após um exasperado e paranoico policial ir à casa dos sogros saber sobre mais este ‘pequeno assassinato’ e revela a impotência, a angústia de um mundo em que é nada investigar crimes tal a disseminação do ato! Mundo onde a justiça tornou-se impossível e inútil bem como o respeito ao semelhante.

Assim que o policial deixa a casa, o pai busca os rifles que possui, distribui-os ao filho, à esposa, ao genro. Abre as janelas e atiram a esmo nas pessoas que passam. Não são mais vítimas dos pequenos assassinatos, mas algozes. A indignação frente à marcha do mundo, a indignação frente à justiça inútil produz um traço: fazer do mesmo jeito!

A comparação entre Lacan e Feiffer é feita, então, pelo desmonte do que considerava-se imutável – a ordem das ‘letrinhas’ – e o jogo social. A filha mora só, o filho com os pais. O homem forte apanha e não reage, a mulher delicada defende-o, a igreja prega o ateísmo, não há sinal de solidariedade além do interesse amoroso, o semelhante é reduzido a um alvo arbitrário e anônimo. O casual substitui a impossibilidade entre o agente e o outro e o obstáculo entre a produção e a verdade: tudo se consome, restando ao sujeito a indignação ou a identificação.

De modo que é possível concluir que o sem sentido dos pequenos assassinatos, a indignação aí gestada, resulta do sepultamento do Outro da linguagem pelo não senso do Real tornado ato. O gozo feroz não é mais apaziguado, pois o significante do pai tornou-se precário. Cego.

Cabe à cultura sacar que tal precariedade do Nome-do-Pai não obriga o ser à indignação. Ou ao ódio. Ou à cólera.

Há como a clínica psicanalítica participar disso, oferecendo novo significante? Que não seja um lamento pelo desaparecimento da tradição, mas desempenhe função civilizadora? Por fim: construir uma função civilizadora é parte do jogo transferencial que faz da fala livre o lugar da decifração?