Scroll to top
  • Tel.: (11) 3864.7023

ATIVIDADE PREPARATÓRIA DA EBP-SP – O Gide de Sobre o Gide de Lacan

Maria Helena Barbosa

No final de 1988, no Seminário de Estudos Aprofundados, Jacques Alain-Miller proferiu quatro sessões intituladas Sobre o Gide de Lacan (1). Nelas, abordou o texto A juventude de Gide ou a letra e o desejo (2), de Jacques Lacan, publicado na revista Critique, em 1958.

Este texto de Lacan, por sua vez, é uma resenha do livro Juventude de André Gide, um estudo biográfico, escrito em 1956/57, por Jean Delay, psiquiatra, neurologista e escritor francês, que acolheu o Seminário de Lacan, em Saint-Anne.
Para tanto, os três autores se valeram de diversos textos de Gide, de sua correspondência com a mãe, de referências a outros trabalhos sobre sua obra, de outros escritores que procedem, na escrita, da mesma forma que ele, e trechos da obra de Goethe.

Naquela ocasião, Miller desenvolveu uma abordagem desse texto de Lacan visando o tema traços de perversão, do Encontro Internacional do Campo Freudiano de 1989.

Hoje, retornamos ao Sobre o Gide de Lacan, agora visando a adolescência, nos preparando para o XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, com o tema Adolescência, a idade do desejo.
Esta orientação surge da intervenção de Miller Em direção à adolescência (3), ocorrida no encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança, em 2015. Ele propõe que nos ocupemos de três aspectos da adolescência sendo que, um deles, a imiscuição do adulto na criança, está diretamente articulada a esse texto de Lacan, de onde Miller extraiu e trabalhou duas formas da imiscuição, que abordarei aqui.

Isto toma seu valor, como o diz Miller, na medida em que, através de Gide, Lacan apresenta uma abordagem clínica da juventude como um processo determinante para o sujeito, valorizando instâncias e funções que não estão presentes na infância, modificando nossas referências no que diz respeito à própria estruturação subjetiva como considerada a partir do período pré-edípico e edípico.

Também é digno de nota que o desenvolvimento feito por Miller parte das referências da clínica estrutural, da clínica edípica, do significante e do desejo, porém, a função da letra, tal como a abordamos na clínica universal do gozo, é o viés por onde esta abordagem será tratada.

Além de apontar que, este é um caso de perversão em que o esforço de Lacan é apresentar uma perversão não-standard, Miller avança afirmando que “é como um elo que se segue a articulação da psicose em direção a teoria da neurose”, e traz o fundamento do que propôs como a clínica não diferenciada, unificada.

Desde o início, Miller deixa bastante evidente a tese de Lacan, donde: na “relação do homem com a letra”, … “o estilo é o objeto”. Assim sendo, a criação literária de Gide apresenta o processo de instalação de um estilo que se formou no fim do período de sua juventude e lhe valeu como solução para seu sintoma. É uma criação literária marcada pelo Eu, onde assume sua própria posição, um diário do narrador, na primeira pessoa. É uma narração que duplica sua vida, formalizando-a. Dito de outra forma, na ordenação da narrativa se encontra a própria estrutura do sujeito que a psicanálise designa.

Nas palavras de Lacan: vemos ordenar a ‘composição do sujeito’, a ‘constituição da persona’, ‘a construção de André Gide’, ‘a fabricação da máscara’”. Miller completa dizendo que, é o “’auto-engendramento’ de André Gide – com todas as aspas que se impõe, pois é certo que isto se faz com relação ao Outro”.
Miller situará que a questão clínica central, de que devemos partir, é saber como a relação parental determina uma relação entre o sujeito e o Outro sexo, e que acesso ela determina. É a operação da metáfora paterna em funcionamento articulada à questão da castração.

Ele volta à infância de Gide e a seus pais para estabelecer em que termos se dá a relação parental e como a criança Gide se localiza nela.

Do pai, não há um retrato explícito. Qualquer que seja sua presença, por mais terna que seja, ou ainda que constitua objeto de nostalgia desde seu falecimento, nada tem a ver com a maneira operatória da função do pai. Mesmo, se colocarmos em primeiro plano sua veneração pelo pai, esta não seria a posição normatizada, não substitui a autoridade que não tem necessidade de ser venerada. O pai de Gide exerce a função do pai mais como um amiguinho. É uma figura de pai em tons pastéis.

Já a mãe é bastante envolvente e tem uma prevalência determinante. Uma mãe bastante própria, que nos arranca do universal da mãe.

Por fatos da vida dessa mãe, Lacan pôde extrair que sua posição subjetiva se dá a partir da homossexualidade feminina, mesmo que não efetuada do lado do corpo uma vez que não há a menor indicação disso. Nela, o falo não tem o lugar que deveria ter para assegurar o bom funcionamento da metáfora paterna. Ela não simboliza o objeto de seu desejo no falo. O desejo desta mãe, DM/x, permanece, em sua significação, problemático. Para a posição de madame Gide, há uma negatividade que vem se depositar sobre o falo, porém de modo completamente distinto da castração, DM/x = (-φ). O falo não se inscreve, há aqui uma mortificação do falo (-). É o que comporta a falha do desejo dessa mulher.

Lacan se pergunta, Miller o segue, e por aí vamos também: “Que foi esse menino para sua mãe?”. Para esta análise, Miller formaliza que Lacan propõe um ternário clínico entre o amor, o desejo e o dever.

Se na metáfora paterna o pai reina como lei na medida em que domina a função dita do Desejo da Mãe – lei/DM, na metáfora gideana há uma modalidade especial – Gide foi a criança amada, não a criança desejada.

O que isso quer dizer? Qual é o amor desta mãe?  O amor de que se trata aqui não é um amor enlaçado ao desejo simbolizado pelo falo, é um amor desencarnado. De um lado temos a dissociação do amor e do desejo: amor//desejo, e de outro, a identificação do amor ao dever: amor ≡ dever, mais precisamente ao mandamento do dever. A palavra, mandamento, que é uma palavra cara a Gide, visa o supereu. Não é simplesmente a lei, mas o aspecto que ela toma quando é sustentada pelo objeto voz, que é a da mãe. Uma mãe que, de maneira explícita, suporta o reino da lei

Onde está o desejo? O desejo que aparece aqui exclui a criança Gide da questão. Existe amor ou dever – o desejo parece em posição de exclusão. A mãe de Gide apresenta o amor identificado ao dever, e tem, igualmente, um desejo, mas um desejo que tem como consequência (φo). É no que ela pode ser dita mortífera, ela leva à morte.

Quando seu pai morre, Gide, com onze anos à época, diz que “está preso, no invólucro de seu amor” – a mãe é toda dele. Miller destaca que, “o princípio fálico do desejo comporta, precisamente, que a mãe não é toda da criança, ele desfaz o invólucro do amor”.

Então, no lugar do que deveria ser o significado do desejo da mãe, há a mortificação, e de maneira concomitante e consequente, o gozo fálico desempenha seu papel totalmente sozinho, e a criança Gide se localiza “entre a morte e o erotismo masturbatório”.

Dito de outra forma, se tomamos o significante da castração, (-φ), podemos dizer que é como se estes dois elementos se encontrassem disjuntos: de um lado o menos, (-), que funciona sozinho – é a mortificação, e do outro, o falo, (φ), que faz a sua parte, sozinho.

A criança Gide não renuncia o sexo. Pelo contrário, parece que por não estar inscrito no reino da lei, o órgão, completamente fora da lei, é muito ativo. A função permanece absolutamente operante, e ao mesmo tempo, vai vaguear de maneira totalmente transgressora. O gozo do órgão não foi enganchado na metáfora paterna. Uma ilustração disto é o fato de Gide ter sido expulso do internato onde estudava, aos oito anos de idade, por praticar a masturbação na sala de aula.

Temos, assim, a infância de Gide. Sua juventude se estendeu até tarde, por volta dos vinte e cinco anos, até que ele pudesse concluir, relativamente, sua posição em relação à sexualidade, ao desejo enquanto tal. Relativamente na medida em que a solução encontrada pelo sujeito Gide, frente à dissociação do amor e do desejo, não foi a solução da metáfora paterna, que associa o amor ao desejo. Na fórmula de Lacan, onde “o amor permite ao gozo condescender ao desejo” encontramos o amor como mediação entre o desejo e o gozo – o amor que humaniza o gozo. Novamente, para ilustrar, Gide escreve que viveu “completamente virgem e depravado” até quando, aos vinte e quatro anos, inicia relacionamentos sexuais com pivetes, de forma clandestina, e, aos vinte e cinco, casa-se com a prima Madeleine.

É o que justifica dizer que, na vertente do amor, de seu amor tão grande e único por sua prima, Gide obedece a fórmula masculina – as mulheres são todas as mesmas, com o lugar marcado da exceção conferido a Madeleine, que é o ideal de anjo, sem sexualidade, e promove um casamento não consumado. Por outro lado, na vertente do desejo ou do gozo, ele obedece à fórmula feminina, o desejo permanece clandestino, não associado ao amor, praticando a pedofilia.

Aqui veremos o processo por onde vai, e o que é, “a imiscuição do adulto na criança”, no sentido de promover a possibilidade da posição do sujeito desejante.

Como destaca Miller, “sabemos que Gide é um homem de desejo e, a partir deste dado de base, Lacan foi conduzido a colocar o desejo na posição de intrusão”. Se o ternário clínico – amor, dever e desejo, indica que o desejo está na posição de exclusão, a presença do mesmo, na vida de Gide, o reintroduz por uma intrusão.

Para dar conta da primeira forma da imiscuição, que chamei “do desejo do Outro no gozo do Um”, Miller formaliza que, “esta necessidade lógica de efração do desejo, (do desejo em posição de exclusão), explica que Lacan tenha selecionado, na história de Gide, o episódio da sedução pela tia, lembrança de Gide que data de seus treze anos, e é concomitante à escolha de Madeleine como único objeto de amor”.

Entre a mãe e Madeleine, Lacan foi procurar o elemento mediador que os conecta – uma segunda mãe. Miller localiza que “a tia, em primeiro lugar, é a segunda mãe porque é a mãe de Madeleine, e que, poderíamos, consequentemente, tentar dizer – uma mãe para o desejo”.

O que justifica elevar a mãe de Madeleine a esta posição? Resumindo Miller: há uma espécie de par significante entre as duas mães em A porta estreita, de Gide: uma voltada ao negro; na outra, o negro está absolutamente excluído; uma virtuosa, outra da perdição. Madeleine, de um lado, parece-se com a mãe de Gide em sua cor, sua ausência de graça, etc. De outro, ela tem, também, os traços de sua própria mãe, é como um cruzamento destas duas mães.

Esta tese das duas mães leva em conta a dissociação do amor e do desejo. Mais ainda, não são apenas as mães que são duplicadas, é propriamente a função fálica que se encontra cindida.

Lacan situa que no episódio da sedução pela tia, “é na mulher que o sujeito se descobre transmudado como desejante”. Em Porta estreita, Gide descreve o efeito desta sedução sobre ele, e Lacan o formaliza ao dizer que “no imaginário, ele se torna o filho desejado”, precisamente aquilo que lhe faltou na sua relação com sua mãe de todo amor.

Ainda assim, o encanto mortífero da mulher ideal, em que Gide mergulha ao se oferecer, como o objetivo maior de sua vida, a proteger Madeleine, de tudo, de todos e da vida, leva Lacan a apontar que “resta saber porque o desejo e sua violência, que por ser a do intruso, que não era sem eco no jovem sujeito … não romperam este charme mortífero, depois de lhe ter dado forma”.
Miller desenvolve esta questão ao apontar que a tia é a mãe do desejo, mas apenas na medida em que seria a chance de repositivar o falo, uma vez que o desejo da mãe só deixou sua incidência negativa, DM/x = (-), deixou um desejo, de certa forma, sem violência, um desejo neutralizado, que leva à morte, um desejo não simbolizado pelo falo. A chance de reposittivar o falo viria da “intrusão pela qual teria havido uma chance que se inscreva, no lugar da negatividade do desejo, sua positividade, sua violência”, diz ele.

Vejamos, então, qual é o status do desejo da tia? É de um Outro do desejo, porém fora da lei, DM/x = (φ), não traz as marcas da castração, o que não possibilitou repositivar o falo. Com Miller: “A castração é uma articulação entre a incidência positiva e a incidência negativa do desejo”.

Por esta via, Gide mantém a escolha de objeto clivada em dois: a escolha do objeto amoroso que foi consequente desse episódio de sedução, e a escolha do objeto do desejo, que passaremos a tratar agora, na segunda forma de imiscuição, a da mensagem de Goethe que, também, vem de fora, onde dizemos da “palavra do Outro no Sujeito”, e que foi um encontro decisivo para ele.
Gide, aos vinte e três para vinte e quatro anos, começa a aprofundar seus conhecimentos sobre Goethe. Com ele, descobre a legitimidade do prazer, em oposição ao puritanismo que sempre havia conhecido com sua mãe. Relata isso numa publicação em que diz “é um dever ser feliz”.

Miller formaliza a intrusão da mensagem de Goethe no sujeito Gide, seu efeito decisivo, apontando que Goethe empresta seu selo simbólico à proliferação imaginária dos personagens gideanos. A mensagem de Goethe, de certa forma a estofa, põe um ponto de basta na persona de Gide e indica certo restabelecimento da metáfora paterna gideana. Ele encontrou em Goethe a palavra que humaniza o desejo, que enlaça o amor e o desejo.

Como diz Miller, “o humaniza relativamente, já que este desejo é em parte clandestino, mas Gide acabará por colocá-lo em praça pública. Ele encontrará uma maneira de revelá-lo e articulá-lo ao universal. Encontra em Goethe a palavra que vem dizer: Tu podes ser o que tu és. É uma licença com efeito, e ao mesmo tempo uma licença que conduz ao universal”.

Esse efeito decisivo é onde se estabelece uma reconfiguração do narcisimo, na articulação do Ideal do eu e do eu ideal, no período púbere, como desenvolve Freud na Introdução ao Narcisismo (4), e faz modificar o marco do período edípico como determinante e final na estruturação subjetiva.

O Ideal do eu, que é o outro como falante, aquele que mantém uma relação simbólica, encontrou na mensagem de Goethe um novo lugar que lhe permitiu estar melhor articulado com o eu ideal, que é formação essencialmente narcisista, do registro do imaginário.

Concluindo com Miller: “Gide troca a palavra mandamento, que é a palavra gideana da interdição, da inibição, pelo lugar que deu à mensagem de Goethe – deixa o reino da interdição e do mandamento: há uma promessa de universalidade se aceitas o mais extremo de tua relação com o que desejas”.

 

(1) Miller, J-A., Sobre o Gide de Lacan, Opção Lacaniana, nº22, p.16, ou na versão online, nº 17 e 18.

(2) Lacan, J., A juventude de Gide ou a letra e o desejo, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, p.749

(3) Miller, J-A., Em direção à adolescência, Opção Lacaniana nº72

(4) Freud, S., Introdução ao narcisismo, Obras Completas, vol. XIV, Imago editora