Francisco Junior Lemes (CLIPP – NUPPE)
Em 1953, no alvorecer do seu ensino, Lacan introduziu o simbólico como uma ordem: “O contexto da análise não é outra coisa – reconhecer que função assume o sujeito na ordem das relações simbólicas que cobre todo o campo das relações humanas, e cuja célula inicial é o complexo de Édipo, onde se decide a assunção do sexo” 1. E, a partir de então, apoiado no estruturalismo, renovou a noção de inconsciente freudiano – sua tese radical de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, já que a linguagem é a estrutura: “Eu a aponto [a experiência] no lugar do Outro: o inconsciente é o discurso do Outro, eis minha fórmula” 2.
Com efeito, considerou que Lévi-Strauss adentrava, com suas estruturas elementares, na dimensão aberta por Freud, e que elucidava as regras, conferindo não só autonomia, mas prevalência à dimensão simbólica. Como destaca Jacques-Alain Miller, “é a combinatória do simbólico que está na base do ensino de Lacan”, da sua primeira concepção do inconsciente, e que confere sentido à noção de destino que ela encerra, “um destino prescrito por regras inconscientes” 3. Basilar e não somente inicial, já que se manifesta, patentemente, na construção do que Lacan chamou os quatro discursos, isto é, há combinatória a cada vez que está em jogo o social. Aí está dito, inclusive, que a experiência analítica “é estrutura de discurso” 4.
Sublinhamos o caráter de ordem do simbólico, tão fundamental no ensino de Lacan, como introdução à inflexão que representa o que nos habituamos chamar seu último ensino, que precisamente começa a manter juntas, sem nenhuma prevalência, a atar as três dimensões da experiência/de espaço habitadas pelo falante – o real, o simbólico e o imaginário –, quer dizer, a partir d’O Seminário 20, trabalhado com afinco no NUPPE-Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da CLIPP, coordenado por Leny Magalhães Mrech (EBP/AMP), e mediante o qual produzimos questões para o ato educativo.
Pois bem, crer no lugar do Outro é mais tradicional do que lidar com sua inconsistência, ou priorizar um sentido ao invés de uma orientação. Por isso que, ao final de seu ensino, mais além do gozo edipiano, que passa pelo Nome-do-Pai, Lacan isolou uma parte de gozo não simbolizável, que corre fora do regime da castração. Tal percurso, como esclarece Fernanda Otoni, “exigiu a passagem do falo como índice da castração – princípio de uma ordem introduzida por um menos de gozo – para o falo como o ‘que certifica um real, o que quer que seja’” 5. Ou, nos termos de Éric Laurent, como o que verifica a “existência reconhecida de um princípio de desordem do gozo” 6.
Desta perspectiva, o simbólico cessa de ser uma potência de ordem; acompanhando Miller, podemos dizer que, no último Lacan, “o simbólico é concebido de maneira privilegiada como uma potência de desordem”, que “desordena aquilo que se apresenta como uma suposta harmonia natural”, assumindo um valor muito diferente: “uma potência de desordem que introduz perturbações quando a invocamos” 7.
No entanto, por que não remar também aqui com a linguagem das substituições? Por que não içar as velas da mobilidade combinatória? Porque o que se converte em referência é o vivo, o biós, a vida, enquanto o ponto de partida do seu ensino era mais “a face do Outro na aprendizagem da língua, razão pela qual há uma sociologia imediata” 8 do que, doravante, Lacan chamou de falasser (parlêtre), ou seja, do termo que reúne o sujeito e o corpo, o inconsciente e a pulsão, do termo que “se sustenta na equivalência originária inconsciente-pulsão” 9.
Como bem enfatiza Sandra Oliveira, é com a introdução do conceito de lalíngua que Lacan nos apresenta “um simbólico desarticulado do Outro e referido ao Um do gozo, que fala para si próprio com a pulsão. No lugar do Outro que não existe, Lacan parte da evidência de que “há o gozo” como propriedade de um corpo vivo e que fala” 10. No lugar do Outro, o corpo próprio, de sorte que expressões como o ser vivo que fala não são anódinas. O simbólico é confrontado com o vivo, o corpo vivo, ao qual aporta discordâncias. Aqui, dirá Otoni, “o universal encontra lugar em torno do Um, seu radical singular. E é a partir daí que Lacan pode extrair alguma coisa que ele chamou de sinthoma” 11. Trata-se do Um-Corpo.
Além do mais, nessa inflexão há também uma tentativa de dar mais dignidade ao imaginário que, não subsumido ao simbólico, perderia sua característica inercial como imagem do corpo refletida. Como aponta Jésus Santiago, já no Seminário 20 encontramos um esboço disso, no sentido de que o imaginário “possa se compatibilizar com os orifícios do corpo” 12 – exatamente quando surge a proposição de que “o que faz aguentar-se a imagem, é o resto” 13, tal qual o hábito que ama o monge por serem apenas um. “Mais do que um invólucro”, destaca Santiago, “o hábito constitui-se no próprio índice do que, no corpo do monge, define-se como seu modo de gozo” 14. Ou, nos termos de Lacan, no próprio índice do que “talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto a” 15, do corpo como objeto a.
Assim, apontando algumas contribuições do NUPPE neste segundo semestre de 2022, podemos dizer que essa desordem, a qual nos aferramos no texto, é obra do gozo do corpo. Do gozo que, tal como enfatiza Laurent, “faz desordem no simbólico e não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço: ele se apresenta como irrupção ou emergência” 16; bem como que o gozo, enquanto sexual, é fálico, […] ele não se relaciona ao Outro como tal” 17, de modo que o falasser sempre recairá sobre a separação de todo sentido que ele assinala, a solidão que marca.
Em resumo, demo-nos conta que a noção exclusiva do sujeito tomado na cadeia simbólica, desde a prevalência do simbólico, fica a ver navios frente aos dilemas atuais, procurando fazer uma leitura do campo pedagógico em termos de sua função civilizadora e supondo o ato educativo como a introdução de um furo na ordem simbólica, de que algo escapa, sem pretensões universalizantes ou que desautorize a distância da “dizência” 18. Até mesmo porque novos sintomas têm emergido nos lugares em que se pretende educar, o que, segundo Leny Mrech, “têm revelado a dificuldade de nos encontrarmos diante daquilo que não consegue ser colocado em palavras” 19
1 LACAN, J. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Versão brasileira de Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1979, p. 83.
2 LACAN, J. Pequeno discurso no ORTF (1966). In. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2003, p. 228.
3 MILLER, J-A. El lugar y el lazo. Los cursos piscoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto establecido por Graciela Brodsky. Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 290. (Tradução nossa).
4 LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Versão brasileira de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1992, p. 15.
5 OTONI, F. Um princípio de desordem, como tal… In. O feminino infamiliar: dizer o indizível. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021, p. 233.
6 LAURENT, É. (Inédito). A desordem fálica: o falo não negativizável. Rio de Janeiro, 18 nov. 2018.
7 MILLER, J-A. El lugar y el lazo. Los cursos piscoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto establecido por Graciela Brodsky. Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 291. (Tradução nossa).
8 “Por isso, o falasser é les trumains. É neles que se parafusa a sociologia de Lacan”. Cf. MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Revisão do texto de Teresinha Prado. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2009, p. 193.
9 MILLER, J.-A. Habeas Corpus. Opção Lacaniana/Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 73, p. 36, ago. 2016.
10 OLIVEIRA, S. M. E. O corpo e o Outro. Almanaque/Revista Eletrônica do IPSM-MG, n. 13, jul./dez. 2013. Disponível em: <http://almanaquepsicanalise.com.br/o-outro-e-o-corpo/>. Acesso em: 11 novembro 2022.
11 OTONI, F. Um princípio de desordem, como tal… In. O feminino infamiliar: dizer o indizível. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021, p. 234.
12 SANTIAGO, J. O novo imaginário é o corpo. Derivas Analíticas/Revista Digital de Psicanálise e Cultura da EBP-MG, n. 11, dez. 2019. Disponível em: <http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/corpo2>. Acesso em 11 novembro 2022.
13 LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2008, p. 13.
14 SANTIAGO. Op. cit.
15 LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2008, p. 13.
16 LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 209.
17 LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2008, p. 16.
18 “A dizência é ‘a língua tal como falada pelas pessoas de um dado ofício’”. Cf. MILLER, J-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 10.
19 MRECH, L. M. Clínica, Educação e Psicanálise. In. Carta de São Paulo/Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – São Paulo. Marizilda Paulino (Org.). São Paulo: EBP-SP, 2014, p. 112.