Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP)
Hans em pequenas notas
O pequeno Hans aos quatro anos faz o sintoma fóbico inaugurando a sua neurose. Sua fobia é objeto da investigação do seu pai com quem nutre uma relação afetiva e amorosa. Hans tem em seu entorno um ambiente onde não é confrontado com frustrações. “Ele nada em felicidade”, como diz Lacan.
Contudo, esse cenário conhece um limite diante da gravidez da mãe que espera por uma menina e das repreensões feitas por ela: “Se você se masturbar, vamos chamar o Dr. A. para te cortar isso”.
Mesmo assim, Hans continua sua exploração masturbatória com um grande interesse pelo faz-pipi, objeto de sua investigação. O faz-pipi é tomado como significante, o elemento que ele pode verificar se existe, se não existe, se é maior, menor. É com o faz-pipi que Hans estipula os contornos do seu mundo simbólico.
O que muda então na vida de Hans para o advento da fobia aos quatro anos e meio?
Podemos acompanhar com Freud os elementos descritos pelo pai de Hans: a lembrança do filho ouvindo o comentário sobre como os cavalos podem morder os dedos sem o cuidado necessário, a própria visão de Hans dos cavalos caindo na rua, ou se desacoplando das carroças tão comuns nas ruas de Viena.
Lacan não colocará o elemento chave nessas cenas, mas sim no detalhe que se modifica na economia libidinal do pequeno Hans. “O que muda é que o seu próprio pênis começa a tornar-se alguma coisa completamente real. Seu pênis começa a agitar, e a criança começa a se masturbar. O elemento importante não é tanto que a mãe intervenha neste momento, mas que o pênis se tenha tornado real” (LACAN, (1995[1956-57]), p. 231)
O pênis real que emerge é corpo, mas não é um corpo integrável à imagem narcísica e especular que Hans tem até então. Um arranjo com esse corpo-estranho do falo real terá consequências em sua relação com o Outro. Se pudéssemos imaginar a pergunta feita por Hans à mãe seria algo como: que valor tem para você meu faz-pipi? Que valor tem para você a minha irmã que está para nascer? São perguntas que giram ao redor de um furo do sentido, não há resposta não porque não há o que responder, mas porque são perguntas que testemunham um encontro com um gozo naquilo que ele não se articula em significante.
Ser aquele que responderia às demandas da mãe, ou ser aquela que responderia irrestritamente às demandas do filho, é um sonho angustiante pois promete uma vida sem o elemento opaco que pela via do simbólico está articulado ao desejo do Outro e pela via do real está articulado ao gozo como a presença de um vivo no corpo vivo, nunca plenamente ajustável aos designíos do Outro do sentido.
Para além do falo como intermediário entre a mãe e o filho, há sempre a presença de um gozo não-complementar que sempre se extravia e deixa suas marcas.
Aqui Lacan indica que o determinante para a análise do caso é localizar a emergência da angústia, e como Hans responde ao enigma do desejo.
“A angústia de que se trata nessa ocasião, como devemos concebê-la? [a angústia] surge a cada vez que o sujeito é, por menos sensivelmente que seja, descolado de sua existência, e onde ele percebe como estando prestes a ser capturado por alguma coisa que vocês vão chamar, conforme o caso, de imagem do outro, tentação, etc. Em suma, a angústia é correlativa do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar. É isso aí, a angústia” (LACAN, (1995[1956-57]), p. 231)
O que isso atesta no caso Hans? A emergência pulsional vinda pelas agitações do faz-pipi implica para Hans que há algo além das peripécias da sua vida prazerosa de felicidade com a mãe. A opacidade da pulsão sob a forma dessa presença real do pênis excitado, coloca uma sombra no seu mundo que antes era codificado, pelo lugar nunca até então abalado, em sua relação com a mãe e com o pai. Com um pênis ereto não há mais como ser para a mãe tudo o que ela quer; sobre essa satisfação corporal, o enredo de ser o filho não é mais suficiente. Introduz-se um intervalo entre os significantes que compunham o seu mundo e o lugar de ser o falo do Outro; perde-se uma consistência que desvanece em angústia.
A primeira interpretação de Freud sobre a emergência da fobia assenta-se numa leitura da angústia dentro do quadro do complexo de Édipo. A angústia de Hans é fruto da libido, o desejo incestuoso pela mãe. O cavalo é nesse marco um substituto do pai e com a fobia ele atesta o seu desejo de morte do pai como rival edípico: a agressividade que não pode aparecer como ato motor retorna sobre o próprio Hans como ameaça fóbica. Freud diz literalmente como o cavalo é como um pai, que tem óculos e bigode destacados, leitura que logo encontra um limite no próprio Freud – com o texto Inibição, Sintoma e Angústia, Freud reformulará tal interpretação, retirando o enredo edípico do centro da questão.
Hans padece de um excesso pulsional e, apesar de o conflito psíquico produzir um sintoma como resposta, produzirá como resto um elemento opaco, a mancha negra na boca do cavalo. Freud dirá que este seria o sinal de que, apesar de a angústia ter se convertido em medo, há algo que ainda preserva um quantum pulsional não abordável pela solução fóbica. Mais uma vez, a presença do desejo por um lado, e, por outro, o gozo não-complementar…
Acho interessante marcar esse duplo registro porque diz de um ângulo possível para pensar o caso Hans a partir da sexualidade feminina. Há uma mãe do desejo, mediada pelo falo, e há uma mãe do gozo, não complementar e sempre extraviado por estrutura. Não são duas mães apartadas, não são duas modalidades de Outro distintas, são os acentos que Freud e Lacan darão àquilo que causa cada um em sua pertinência com o vivo do corpo.
Hans ensina como o sujeito faz o que pode para inventar um pai, inventando um sintoma
Essa premência da angústia diante da opacidade do desejo do Outro implica, para Lacan, um elemento chave, encontrável na estrutura da fobia: o tema da devoração. Estar na posição de ser uma presa para o indeterminado do desejo do Outro. O que o Outro quer de mim?
Se há uma pregnância dos animais na estrutura da fobia é porque eles são semblantes de uma presença, não completamente identificada na imagem humana, porém localizada como uma presença definitiva e possivelmente predatória. O medo dos animais localiza, em termos simbólicos, uma presença real. Há algo ali que concerne ao sujeito sem que se saiba exatamente o que é.
Trata-se de localizar um enigma, um enigma sobre o desejo do Outro, que afinal é também o enigma sobre o feminino como alteridade radical. Não me parece gratuito lembrar como Freud já atrelava o animal totêmico à função paterna.
Gostaria de conferir o acento nesse aspecto: antes de ser um barramento do desejo materno, a metáfora paterna é um localizador, uma maneira de situar em coordenadas simbólicas, habilitando, numa função operatória, o indeterminado do desejo do Outro. Sem a metáfora paterna, a pergunta sobre o desejo não pode ser habilitada ao sujeito. Essa habilitação ao enigma inscrito no campo do Outro é uma função poética da incidência do nome do pai como operador.
A consequência dessa intervenção estará por excelência no funcionamento do falo simbólico articulado à sua dimensão imaginária e real. Nunca é um falo abstrato e desencarnado após a incidência da metáfora paterna. No caso de Hans, o faz-pipi tem uma densidade muito diferente após a incidência da fobia aos cavalos. Se antes tudo era em forma de faz-pipi generalizadamente, após a fobia este se torna algo mais operacional, intercambiável. O sonho do torneiro atesta bem essa passagem.
“Lembrem-se de como Hans saiu disso, e de como essa saída foi simbolizada no último sonho. O que ele convocou no lugar do pai foi aquele ser imaginário e onipotente chamado encanador. Esse encanador apareceu, justamente, para desassujeitar alguma coisa, pois a angústia do Pequeno Hans era, essencialmente, como eu lhes disse, a angústia de um assujeitamento. Literalmente, a partir de um certo momento, ele percebeu que, ficando assujeitado assim, era impossível saber para onde aquilo poderia levá-lo. […] Graças a seus medos, ele dá um para-além ao assujeitamento angustiante […] Para que ele não seja pura e simplesmente um assujeito, é necessário que apareça alguma coisa que lhe meta medo”. (LACAN, (1999[1957-58]), p. 196)
O sintoma-pai inventado por Hans permite instituir a função da lei como aquilo que faz um ponto de basta à obediência da regra imposta pelos caprichos do Outro. Com a fobia, Hans inventa uma lei que o desobriga de ser o penduricalho da mãe, ou seja, um sintoma-pai é um separador.
A incidência do sintoma-pai como separador do sujeito com o Outro terá consequências nas relações com os elementos pulsionais que o separam de sua própria imagem narcísica. Um sintoma-pai também é um modalizador da maneira como lidamos com aquilo que temos mas não alcançamos: o falo e seus representantes (partes do corpo, pensamentos, filhos, ditos, amantes).
Aqui acompanho o colega da EOL Marcelo Barros em seu livro “Intervenção sobre o Nome-do-pai”: “a função do nome-do-pai é a de sustentar e mediatizar o vínculo com uma extimidade que só pode ser abordada sintomaticamente. A instauração da significação fálica, então, não deve ser entendida como uma primazia do sentido, como é costumeiro fazer, mas como primazia da dimensão sintomática.” (BARROS, 2018, p. 43).
A questão clínica que nos interessa é como o sujeito se serve daquilo que nele não é “Eu”. Isso terá implicações no manejo da transferência porque o analista é um desses infamiliares, mas sobretudo na possibilidade de o sujeito aceder a responder pelo desejo que o atravessa e o angustia. Só há responsabilidade, no sentido analítico, por aquilo que escapa ao sentido e ao Eu, posição ética que é determinante para a direção do tratamento. Afinal, essa é a premissa fundamental da associação livre: há algo no meu dizer que excede ao que digo, quando há um dizer em jogo.
Hans ensina como o sintoma-pai é um localizador da angústia e como isso habilita o desejo operar
Um sintoma que faz função de pai é um sintoma que torna operativo a pergunta sobre o desejo que é sempre angustiante. O neurótico esforça-se para nunca deixar espaçar demasiadamente o intervalo entre os significantes que compõem os sentidos de sua realidade. Todo o esforço é para manter à distância a presença real e enigmática do desejo do Outro. Nos intervalos entre os significantes, habita o que Lacan denomina “presença real”, um outro nome para o desejo e sua opacidade. “O desejo vem habitar o lugar da presença real e povoá-lo com seus fantasmas”. (LACAN, (2016[1958-59]), p. 322)
Os significantes encadeados por seus intervalos velam a pulsação desta presença real. É o sentido que adormece a presença enigmática do desejo sempre ameaçadora.
“Será por esses intervalos que a presença real ameaça todo o sistema significante? É verdade […]. Aquilo que denominei para vocês, da outra vez, a propósito do pequeno Hans, o significante universal realizado pelo objeto fóbico, é isso, e não outra coisa”. (LACAN, (1992[1960-61]), p. 323)
O objeto fóbico impede o sujeito de se aproximar dessa hiância posta em marcha na relação da mãe com ele. “O motor e a razão da fobia não são, como acreditam aqueles que só têm a palavra medo na boca, um perigo genital nem mesmo narcísico. Muito precisamente – ao sabor de certos desenvolvimentos privilegiados da posição do sujeito com relação ao grande Outro, como é o caso na relação do pequeno Hans com sua mãe – o que o sujeito teme encontrar é uma espécie de desejo, que seria de natureza a fazer voltar, antecipadamente, ao nada toda criação significante, todo o sistema significante.” (LACAN, (2016[1958-59]), p. 323)
O encontro com o desejo da mãe põe todo o sistema significante de Hans em perigo. Para proteger esse sistema de sua falência completa, o que seria o próprio apagamento de Hans como sujeito, intervém o objeto fóbico como uma metáfora paterna, que localiza o enigma do desejo materno sob a forma da significação fálica. Lacan dirá, pouco depois, como o objeto fóbico é por excelência aquilo que permite localizar o informe do desejo do Outro, na forma fálica do objeto fóbico.
“A fobia é realmente a manutenção da relação com o desejo na angústia, com um suplemento mais preciso: o lugar do objeto enquanto visado pela angústia é mantido por aquilo que lhes expliquei longamente, a propósito do pequeno Hans, ser a função do objeto fóbico, a saber […] o falo, mas é um falo que assume o valor de todos os significantes, o do pai, se preciso” (LACAN, (2016[1958-59]), p. 446)
É interessante acompanhar as citações de Lacan porque à princípio, parece que o objeto fóbico é uma versão degradada do falo como o operador virtuoso do desejo. Mas isso seria uma leitura apressada. O falo-fobia de Hans é parte da constituição de um elemento simbólico-imaginário-real que intervenha como separador do circuito das demandas e contra-demandas, sobretudo na relação dele com a mãe.
Isso permite um olhar menos patriarcal à função paterna como o que iria domar o insaciável desejo da mãe. Além de demodê, é equivocado, com o que Lacan tenta estabelecer com os termos nome-do-pai, falo, desejo, angústia. O pai como agente da castração não o é porque faz uma proibição simples; pai é tudo que incide num circuito fechado de gozo para abrir (traumaticamente) um mais-além da demanda, inscrevendo o desejo como enigma.
Menos que um proibidor, trata-se de uma abertura de caminhos notadamente sintomáticos. E por que sintomáticos? Porque não são caminhos normativos em relação ao gozo estabelecido; ao contrário, são portadores da transmissão de um desejo que, apesar de ser opaco, aponta sempre à um além da demanda do Outro.
“A proibição autoritária ou argumentativa, se situa no registro da demanda. Se o paterno tem qualquer eficácia, ela reside na incidência do real de um desejo e na incidência de uma enunciação” (BARROS, 2018, p. 52).
Esse comentário é para mim importante para destacar algo muito presente na clínica contemporânea e nos temas que atravessam nossa sociedade atualmente. Hans ensina não somente que o pai é muitas vezes um sintoma-pai, mas também que o pai não é patriarcal. A intervenção que separa não coincide com a intervenção que barra. Um barramento tem mais a ver com uma demanda, do que a abertura promovida por uma separação instauradora do desejo como enigma.
Há um ângulo bem interessante em Hans sobre como pensar a sexualidade masculina nos tempos de hoje. Há autores que privilegiam muito que uma saída verdadeiramente fálica (e masculina) foi o que faltou a Hans e que ele ficou preso no circuito materno, como se o pai, sendo muito gentil, tornou-se deficiente em sua função de marcador da lei. Pensar por aí é uma maneira, a meu ver, de perpetuar uma espécie de nostalgia ao homem patriarcal como centro da vida familiar e modelo de uma vida masculina. É um sonho sedutor para muitos homens e mulheres, muitas mães e pais, contudo, uma miragem cada vez mais questionada, porque claramente é um embuste, mesmo quando assim mesmo se parece.
O caminho para um homem assumir sua virilidade e fazer uso dela como pai é a história de como ele se virou para dar corpo àquilo que, a despeito de suas ereções, é uma presença não plenamente dominável e localizável. A presença do gozo não complementar é uma convocação a fazer um uso sintomático do falo, dando um contorno à sua virilidade como pode. Por isso me parece interessante pensar que o viril, ao fim, é o uso sempre provisório, mas marcadamente inventivo e sintomático, que um homem pode fazer com o seu vivo, no corpo vivo. Colocar isso no mundo que não seja somente pela via defensiva é responder à incógnita de Lacan de como desejar sem apenas se defender.
Bibliografia:
Barros, M. (2018) Intervenção sobre o Nome-do-pai. Goiânia: Ares Editora.
Freud, S. (1996[1909]) Duas Histórias Clínicas O “Pequeno Hans” e o “Homem dos Ratos”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Imago Editora, Rio de Janeiro. Vol.X
Lacan, J. (1995[1956-57]) O Seminário, livro 4: as relações de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lacan, J. (1999[1957-58]) O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lacan, J. (2016[1958-59]) O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lacan, J. (1992[1960-61]) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.