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NÚCLEO DE PSICANÁLISE E FILOSOFIA

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

Psicanálise e filosofia constituem discursos diferentes, não se trata, pois,  de uma conjunção, mas da expressão de uma possível relação. Ocorre que o percurso entre a linguagem da psicanálise e a da filosofia está sempre exposto a múltiplos escolhos.

O maior deles seria nada guardar do discurso pelo qual se passou ao atingir o outro, isto é, ao caminhar da psicanálise em direção à filosofia nada guardar da psicanálise e vice-versa, como se nesse ir e vir se estivesse em suspenso num vazio que separa os dois discursos, sem a possibilidade de estabelecer pontes efetivas e sólidas que permitam o trânsito numa ou noutra direção.

Discursos diferentes colocam problemas de tradução intransponíveis?

Ao propor o Núcleo de Psicanálise e Filosofia, a ideia é proporcionar entre ambos os discursos uma conversação: não se trata, em absoluto, de fazer psicanálise da filosofia ou filosofia da psicanálise, embora não seja fácil falar sobre algo que traz o risco, do lado dos filósofos, de tratar questões fora do universo próprio da filosofia e, portanto, com pouco rigor e anacronismo. Por outro lado, os psicanalistas podem se perguntar se as argumentações abstratas da filosofia teriam alguma aplicação na prática efetiva, na pratica clínica.

A verdade é que são mundos de diferentes discursos e nos arriscamos ao equívoco a cada passo, que, como sabem os psicanalistas, é inerente ao ser falante. Entre filósofos e psicanalistas arrisca-se a um diálogo de surdos, em que cada um toma do discurso do outro aquilo que lhe interessa. Insistir nas diferenças entre o discurso da psicanálise e o discurso da filosofia não é mero recurso retórico, mas leva a presentificar a tensão originária entre ambos, o que leva sempre a questionar a possibilidade de êxito possível numa conversação.

É importante não esquecer que a psicanálise, no momento mesmo de sua criação, constitui-se de alguma maneira contra a filosofia. Os esforços teóricos de Freud se apresentam como uma espécie de solução provisória mas indispensável, na ausência de teorias científicas ou filosóficas, que amparassem suas descobertas clínicas.

A psicanálise parece nascer contra a filosofia sobretudo porque, para Freud, a filosofia se encontra tradicionalmente associada à ideia de que a vida psíquica é a vida consciente.

Mas a relação de Freud com a filosofia não é apenas polêmica e hostil. Exprime-se alguma ambivalência, por exemplo, quando ele diz que reprimiu, de algum modo, o interesse pela filosofia, para se ater às formulações teóricas advindas da clínica psicanalítica. A rejeição da filosofia se dá pelo fato de esta colocar-se como obstáculo epistemológico à constituição da teoria em psicanálise.
Freud, com sua descoberta, busca estabelecer fronteiras claras entre a psicanálise e os demais saberes de seu tempo, o que deveria em princípio, impedir o conflito, mas, como dizia Maquiavel, não se impede uma guerra, apenas se a posterga.
A estratégia freudiana, no entanto, não impediu que Empédocles, Demócrito, Aristóteles, Platão, Epicuro, Descartes, Leibniz, Rousseau, Spinosa, Schopenhauer, Kant, Brentano, Nietzsche, aparecessem no corpo do texto freudiano. A ambivalência freudiana em relação à filosofia exprime-se ainda, de maneira particular, quando ele diz que não lia Nietzsche, para não se deixar influenciar pelas ideias geniais do filósofo, mas discussões sobre Nietzsche eram frequentes nas reuniões das quartas-feiras com seus discípulos.

Franz Brentano (1838-1917), que ficou conhecido como um dos mais importantes precursores da Fenomenología teorizada por Husserl, foi o mestre de Freud em filosofia. Filósofo alemão do final do século XIX, Brentano chegou à Universidade de Viena em 1873 com formação aristotélica e certa inclinação pelo empirismo inglês de Locke, Hume e John Stuart Mill. Jones noticia que o jovem Freud assistiu durante mais de dois anos aos cursos de Brentano, incluindo cursos introdutórios a Aristóteles, em particular os de lógica aristotélica, além de conferências e seminários.

Se Freud, com formação filosófica consistente, coloca-se contra a filosofia, parece que a causa maior está em que esta, ou ao menos diferentes tendências filosóficas, não assimilam a ideia do inconsciente ao relacionar diretamente sujeito e consciência. A tensão constante entre a teoria freudiana e a filosofia parece localizar-se especialmente no conceito de “inconsciente”.

Mas a relação de Freud com a filosofia não é a mesma mantida por Lacan. Se em Freud a relação é ao mesmo tempo de recusa e desejo, em Lacan esta relação parece ser de quase de fascinação, mas, principalmente de apropriação.

Lacan, Raymond Queneau, Jean Hipollyte, Merleau-Ponty, Sartre, etc. seguiram com Michel de Kojève (jovem aristocrata russo da mesma idade de Lacan), a partir de 1936 e durante seis anos, um curso sobre a leitura da Fenomenologia do Espírito de Hegel.

Talvez seja viável e enriquecedor pensar numa periodização da produção teórica de Lacan, examinando a evolução de sua obra com as várias tentativas de diálogo com a filosofia. Não apenas com a filosofia em geral, mas também com filósofos seus contemporâneos, como Hyppolite, Ricoeur, Heidegger, Merleau-Ponty, os então jovens filósofos da “Escola Normal Superior de Filosofia”, com os quais a teoria lacaniana e a filosofia encontraram uma forma de articulação.

Lacan insiste em que o essencial de seu pensamento provém de sua experiência clínica, afinal ele é um analista. E como analista ele comentou, discutiu, criticou, contrariou grandes filósofos como Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Kierkegaard, Heidegger. Para fazer uma pálida ideia, no índice final dos nomes nos Escritos, podemos contar com, no mínimo, 45 filósofos, de diferentes épocas e tendências.

Lacan sempre passeou com muita tranquilidade e pertinência, em seus textos e seminários, debatendo e conversando com diferentes filósofos. Temos um diálogo com Descartes no Seminário 11, com Platão no Seminário 8, com Aristóteles no Seminário 7 e no 20, e aí por diante.

Seria a filosofia apenas um recurso didático usado por Lacan? Se a psicanálise é uma práxis e a filosofia sempre persegue a elaboração de conceitos, pode-se pensar que a decisão de Lacan ao dialogar e discutir com a filosofia, passa pela tentativa de teorizar a psicanálise, sua práxis, colocando frente a frente dois discursos: uma clínica que se reinventa em sua práxis e uma tradição filosófica que não foge dos desafios, numa conversação constante. Merleu-Ponty, contemporâneo de Lacan, dizia que a obra tem sua autonomia, mas o sentido que ela tem é a totalidade dos sentidos que liberta (bonito, hem?), e pensando dessa maneira, uma obra de filosofia é a totalidade das leituras que ela torna possível. Parece ser isso mesmo que ocorre com Lacan, com suas diversas e originais leituras dos filósofos com quem dialoga.

No Núcleo de Filosofia partimos sempre de um texto de Lacan, o que propicia a ocasião para dialogar com os grandes filósofos e lógicos produzidos, especialmente, pelo mundo ocidental.

 

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

19/03/2016