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PSICANÁLISE E FILOSOFIA: TRADUÇÃO POSSÍVEL?

M. Bernadette S. de S. Pitteri (EBP/AMP/CLIPP)

Filosofia e Psicanálise, discursos diferentes, permitiriam algum tipo de tradução? Tal percurso está exposto a tropeços, sendo o mais grave nada guardar de um ao atingir o outro, como se na passagem se escancarasse o vazio que os separa, sem pontes de transição.

A tensão entre psicanálise e filosofia é originária; filósofos e psicanalistas podem chegar a um diálogo de surdos, em que cada qual toma do outro aquilo que lhe interessa.

A relação de Freud com a filosofia é polêmica e quase hostil, revelando profunda ambivalência. A criação da psicanálise interpela e coloca questões cruciais à filosofia. Um texto de 1913 aponta teses psicanalíticas que deverão produzir reformulações no pensamento filosófico.

… o estabelecimento da hipótese de atividades mentais inconscientes deve compelir a filosofia a decidir por um lado ou outro e, se aceitar a ideia, modificar suas próprias opiniões sobre a relação da mente com o corpo, de maneira a se poderem conformar ao novo conhecimento” i.

Enquanto crítico da filosofia, Freud a situa como um campo de saber que propõe uma Weltanschauung, visão de mundo totalizante, obturando pontos de fratura. Lacan concorda com Freud em que a

… psicanálise não é nem uma Weltanschauung, nem uma filosofia que pretende dar chave ao universo. Ela é comandada por uma visada particular que é historicamente definida pela elaboração da noção de sujeito. Ela coloca essa noção de maneira nova, reconduzindo o sujeito à sua dependência de significante” ii.

Mas se em Freud há ao mesmo tempo desejo e recusa, em Lacan há quase fascinação, expressa de modo complexo. Ao longo de seu ensino, enveredou em diferentes momentos num diálogo com a filosofia e com os então jovens filósofos da “Escola Normal Superior”, onde a teoria lacaniana e a filosofia parecem ter encontrado uma forma de articulação.

Para Hegel, filósofo caro a Lacan, o filósofo é filho de seu tempo, e se assim o é, ele interpreta sua época, mesmo sem o saber. Lacan por outro lado, previne os analistas da necessidade de alcançar “em seu horizonte a subjetividade de sua época” iii. A diferença estaria nos discursos?

Em a “Direção do tratamento”, Lacan observa que o analista é o agente, aquele que movimenta o discurso analítico, sem jamais fazê-lo do lugar do Outro (A), e sim como semblante de objeto “a”. No discurso do analista, o saber está no lugar da verdade, esta é um semi-dizer.

O discurso filosófico, por outro lado, aproximando-se do discurso universitário, cujo agente é o saber (todo saber), deixa no lugar da verdade o significante mestre, o que mostra ser a filosofia um saber que se quer totalizante.

Pode-se falar em algum tipo de fraternidade, de parceria, no reconhecimento da diferença entre os discursos?

Esta é a aposta, renovada a cada semestre, do Núcleo de Psicanálise e Filosofia. Neste semestre, a proposta será trabalhar o Lacan que vai além da lógica, por ele mesmo criada, e adentra a teoria dos nós, no Seminário 23, O Sinthoma.

i Freud, S. O interesse científico da psicanálise (1913), Par. B: O interesse filosófico da psicanálise. In: Vol. XIII das Obras Completas de SF, Imago.

ii Lacan, J. O Seminário Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 1964, p. 78.

iii Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.