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Xul Solar: artista delirante ou delirante artista?

Maria Bonomi*

  

Em 14 de dezembro de 1887 nascia em São Fernando, província de Buenos Aires, Oscar Agustín Alejandro Schulz Solari, filho de Emílio Schulz de Riga, alemão da Letônia e deAgustina Solari, italiana de Rovereto. O pseudônimo Xul Solar deriva dos nomes paterno e materno. Encontramos pela primeira vez a mudança desse nome quando Xul começa a praticar geometria, uma geometria sobretudo de curvas  por volta de 1916-1917. A primeira forma de assinatura de Xul Solar foi Shol Solari que parece derivar do tema iconográfico dos quatros anjos que detêm os ventos do Apocalipse.

 

Cabe a reflexão sobre a possibilidade de considerar Xul Solar um delirante artista… longe de qualquer enfoque médico pois os médicos precisariam de sintomas de outra natureza para estruturar um diagnóstico. Para um estudioso de artes visuais, seja ele crítico ou artista, é muito claro ser a obra de Xul Solar patrimônio visual de outro universo, de outra lavra, desobrigado e oposto às legítimas manifestações de natureza plástica e estética, mesmo do seu tempo.

 

Por que consideramos Xul Solar um delirante artista e não um artista delirante, apesar de ter desenvolvido uma carreira oficial em seu país e no exterior? O conjunto da obra de Xul Solar é um claro reflexo da necessidade de expurgar assombrações particulares, aflições existenciais; o seu mal estar com a vida visava estruturar fora de si um espelho para seu temperamento melancólico e nervoso, projetando um imaginário totalmente divorciado do desejo de uma  proposta plástica, de uma afirmação estética ou de uma transformação visual.

 

Transparecem em seu imagético forte interesse pela teosofia, pela cabala, pela astrologia, pelo pensamento tradicional chinês, pela história das religiões, basicamente reflexos atormentados de uma formação muito variada, sem nenhuma especialização, senão a indagação sobre o que sua própria pessoa estaria fazendo no mundo. Ao mesmo tempo em que convive com os grandes artistas da época, Kandisky,  MondrianBraquee os latinos Emílio Pettoruti e Torres Garcia, nunca consegue se libertar da exibição de seu conhecimento servil ao ocultismo e ao misticismo, nunca consegue definir na prática artística uma atuação envolvida com ela mesma. Seu percurso artístico é reconhecido pelos grandes contemporâneos que cruzaram seu caminho, principalmente Jorge Luis Borges, o escritor amigo a quem se associou para tertúlias infinitas, com quem vibrava em volta do zodíaco. Mas, a superficialidade que tratava os próprios trabalhos, onde modificava a imagem ao prazer do tema, e a composição, o acabamento, o estilo (sempre anedótico literário) eram concluídos decorativamente, deixando entrever que, ao contrário de Paul Klee, (com o qual foi muitas vezes comparado  pela boa vontade dos contemporâneos), as soluções de Xul Solar eram superficiais, imediatistas, convencionais e, sobretudo, desestruturadas, sem experiências pictóricas, sempre infantis na forma. As pinceladas inconclusas, certas tremedeiras nas linhas indecisas, mescla de estilos e soluções que não estruturam o espaço disponível, certas repetições de temas incoerentes nos óleos, em posições e gesticulações anedóticas, simbolismos banalizados: obra adequada a uma estorinha para passar adiante, por assim dizer, nunca correspondendo ao envolvimento de uma batalha estética. Nunca o domínio da linguagem, mas  a primariedade da comunicação imediata e anedótica.

 

Olhada do ponto de vista plástico e estético, a obra de Xul Solar poderia ser considerada uma obra sem atributos artísticos, a menos que fossem aqueles de um delírio permissivo que lhe confere um status claríssimo de desequilíbrio plástico. Xul Solarsabe que em 1945 Jean Dubuffet inventa o conceito de arte bruta, a define como uma ofensiva revolucionária contra a arte oficial e como uma reabilitação dos artistas excluídos e ignorados, causando uma reação violenta à cultura pasteurizada e aos valores da civilização ocidental. Poderíamos imaginar que os pintores expressionistas alemães, os pintores do Der Blaue Reiter e, em seguida, os surrealistas, pudessem ter tido um grande  encontro uma grande celebração no encontro com Xul Solar. Porém, apenas lhe atribuem o caráter espiritualista. Sua obra não lhes transmite nem competência, nem empenho.

 

A biblioteca de Xul Solar é impressionante, mas é a grande biblioteca de um agoniado. Conhecia todos os caminhos da modernidade européia e americana e também as obras clássicas da religião, da cabala, dos mistérios e do sufismo, não bastassem vários números da Revista de Psiquiatria y Criminologia, desde o Megafone e o Ciclo, dirigida por Osvaldo Pelegrini, até a revista Cosmosófila de Estrella del Occidentede Escenas eTítulos. Ele sonhava fundar uma nova religião com sua arte e criar um mundo para seus seguidores. Viajou loucamente e expôs em vários lugares do mundo, mas nunca deixou de ser um artista sem arte, pois seus estudos e pesquisas foram sempre uma espécie de ficção científica, e sua obra uma obra na qual a importância simbólica era muito maior que a importância plástica. Xul Solar caracteriza-se por não conseguir fazer intervir na arte aplicada a matéria para interagir mais adequadamente com seu imaginário. Suas visões se destroem e se reconstroem em reciprocidade gerando o inesperado, mas nunca uma visualidade possível, concluída.

 

Ele declara: Soy director de un teatro que todavía no funciona.

 

 

 

 

 Texto apresentado na I Ciranda de Psicanálise e Arte, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 28.8.2004.


*Artista plástica e membro do Conselho da CLIPP – Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise– Instituto do Campo freudiano – São Paulo.