Intervir
por Virginie Leblanc
Psicanálise? No século 21? Na era da neurociência e dos exames de imagem?
Psicanálise? Com sua comitiva de mamãe e papai, São Édipo e todas as bobagens normativas, na época dos estudos de gênero e do questionamento da sexualidade binária?
Psicanálise? Essa coisa burguesa? Narcisista, egocêntrica? Enquanto as nações estão ruindo, o planeta está queimando e a busca pela sobrevivência está se tornando cada vez mais urgente?
Psicanalistas, vocês estão muito enganados!
Dizer algo sobre sua prática, avançar com o significante psicanalítico é se expor ao florilégio do discurso atual destacado acima. O real do século, o real do mal-estar da civilização – aquele que Freud se esforçava para mostrar – ainda ressoa na psique individual, mas de uma maneira profundamente diferente.
Podemos todos estar à altura – ao invés de ceder ao modo dominante de discurso – e também responder a isso, sabendo que tal questionamento vai além de Freud – e os dois períodos do ensino de Lacan, até o limite onde uma psicanálise-para-além-do-semblante parece correr o risco de seu próprio desaparecimento?
É fato que esses pressupostos sobre a inutilidade de tal prática de discurso, diante das grandes questões sociais da época, atestam uma concepção muito particular do discurso analítico: esse modo de falar [1], repleto de simbolismo próprio, de oferecer seu poder para revelar verdades enterradas, carregadas de sentido, que desvelariam enfim o desejo inconsciente do sujeito. Um discurso que não representa plenamente o uso contemporâneo do significante que corre e golpeia, sinalizando, dia após dia, sua afinidade com o gozo mais do que com o recalque.
A nossa prática cotidiana encontra-se necessariamente modificada, de acordo com o que Freud anteviu desde muito cedo como o “furo no âmago do real” [2], que, seja qual for o século, separa o falasser dos seus ideais e o confronta com a impossibilidade de estar em paz com o mundo ou com o outro. O paradoxo é que a fala, aquilo de que o sujeito se queixa indiretamente, é o que usamos para tratá-lo. O fato de que a fala o atravessa e o isola, o atola nos mesmos becos sem saída, serve para confrontá-lo com o aspecto mais obscuro do que o anima.
“É realmente necessário repetir tudo isso todas as semanas, e de qualquer forma, para que serve, qual o sentido?” um analisando recentemente me questionou.
“Não, não há sentido”, pensei imediatamente, ecoando a enigmática frase do último Lacan que já me atingiu no corpo várias vezes “Ça sert à rien, não tem sentido, mas ça serre, agarra com firmeza”. [3]
É este último Lacan que, longe das sereias/sirenes [sirens] de sentido oferecidas pela metáfora paterna, nos orienta hoje. Um Lacan que nos abre um caminho difícil: tocar o real é uma questão de vislumbrar outro inconsciente, verdadeiramente diferente do sentido e de sua verdade mentirosa. Não se trata de ir para o outro lado, au delà, do inconsciente, mas, como propõe Jacques-Alain Miller, en deçà, de ficar deste lado. [4]
Assim teremos a oportunidade de ouvir e fazer ressoar, talvez não tanto as palavras, mas a lalíngua que marcou o corpo antes que a linguagem comum o encobrisse; de confiar no significante, menos na sua significação do que na sua materialidade; de fazer emergir a carga do gozo, para esvaziá-lo ao máximo possível, mas, sobretudo, de saber como lidar com ele.
“O que significa associação livre? É uma garantia de que o sujeito que fala vai dizer coisas que têm um pouco mais de valor? Mas todos sabem que o raciocínio [ratiocination], como o chamamos em psicanálise, tem mais peso do que a razão [reasoning]”.
Diante desse raciocinador [ratiocinateur] que é o falasser, corta, pontua, afeta o corpo, o perturba. Localize, cerque e segure a pulsão de morte entre as quatro paredes do consultório. Às vezes expondo o furo em vez de cobri-lo, às vezes fazendo borda nele com a presença real do analista, e talvez menos com suas palavras e mais com sua voz.
Intervir, enfim, não com palavras carregadas de crença de que as coisas vão melhorar, mas como analista aliviado – graças à sua própria análise – da ordem do “para todos”. Não dê sentido. Trabalhe para moldar, capturar, modelar o mais singular do que poderia então acontecer.
Sim, é sem sentido. Mas é vital. É isso.