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Atualidades Psicanalíticas #25

O Laço Social no Mundo Hiperconectado

 Por Marco Focchi

Do ponto de vista psicanalítico, quando falamos em laço social, sabemos que estamos nos referindo principalmente à estrutura do discurso.

No entanto, é preciso atentar para o sentido comum do termo discurso, que é a expressão bem organizada de um pensamento, pois, afinal, é justamente dessa ordem que podemos falar de estrutura discursiva.

Sabemos que a ordem do discurso é concebida como um preciso método de controle das verdades enunciadas, como forma de determinar o que pode ou não ser dito. Por meio da definição da ordem do discurso, passamos então a um controle da verdade e a uma distribuição regulada de poder.

Lacan conceitua à sua maneira a noção de discurso. A sua atenção não está no poder – embora seja adequado examinar suas articulações – mas no gozo e na problemática de sua distribuição.

Na histeria, a relação com o gozo é caracterizada por uma constante insatisfação e reivindicação. Em contrapartida, o senhor sabe colocar o escravo para trabalhar, sendo o escravo quem tem os meios para extrair o gozo de que necessita.

Como variante do discurso do mestre, Lacan também produz o discurso do capitalista. Ele fala sobre isso extensivamente nos anos entre 1969 e 1972, embora tenha escrito sua estrutura apenas uma vez em sua conferência em Milão em maio de 1972.

Estamos agora particularmente interessados ​​no discurso do capitalista porque o mundo está fundamentado nele. Claro, esse não é um discurso invariável, de maneira alguma. Veremos agora como isso tem mudado ao longo dos anos e em diferentes formas de gerenciamento de poder.

De acordo com a subdivisão clássica de Foucault, houve primeiro uma sociedade de soberania. Esta já era uma sociedade capitalista governando territórios. Era a época do capitalismo de confinamento, que fechava os terrenos baldios, criando grandes propriedades subtraindo-as do uso de todos. Depois vieram as sociedades disciplinares, que não erguem cercas ao redor das terras, mas ao redor das pessoas: nas prisões, quartéis, escolas, asilos, mas principalmente nas fábricas.

Deleuze chama nossa sociedade de sociedade de controle. Desde 1990, Deleuze viu as potencialidades de exercer controle por meio do desenvolvimento sócio tecnológico de máquinas capazes de dar, a qualquer momento, a posição de um elemento em um ambiente aberto. Não havia, portanto, necessidade de cercas ou confinamentos, mas sim da lógica da livre apropriação dos bens naturais transformados em bens contínuos.

Essa lógica hoje atingiu seu clímax após o ponto de virada [turning point] no Google entre 2000 e 2001, quando o gigante de Mountain View começou a coletar o que antes eram apenas restos [waste products] com o objetivo de obter valor agregado. Desde o início, o Google havia, de fato, coletado dados de todas as pesquisas feitas em seu mecanismo para melhorar os resultados, tornando-os mais precisos, mais direcionados. Mas os dados que o Google coletou eram superabundantes e nem todos útil ​​para esse fim.

Como o Google não estava gerando lucro, apesar da grande quantidade de capital de risco necessária para apoiar seus negócios, eles decidiram coletar esse excesso de dados [surplus of data] contendo informações sobre o comportamento dos usuários para criar sistemas de prospecção comportamental e vender publicidade segmentada com uma precisão até então impensável. A partir daí, os lucros do Google se multiplicaram mais de trezentas e cinquenta vezes a soma inicial, o que é uma enormidade.

Pouco tempo depois, o Facebook também concordou em lucrar com essa forma de explorar dados comportamentais. Nos vinte anos intermediários, essa lógica se desenvolveu desproporcionalmente. Não se limita mais a seguir rastros de nossos cliques, mas segue fisicamente nossos passos. Por exemplo, os dados são coletados por Street views ou por jogos como Pokémon Go, onde perseguir pequenos monstros leva os usuários a lojas que pagaram pelo anúncio.

Não existem formas de proteção contra esta invasão de nossa privacidade. As declarações nas quais devemos clicar para assinar nosso consentimento são notoriamente um escárnio sério.

Todo esse extraordinário aparelho de coleta de dados não se limita a fins comerciais. Edward Snowden já havia nos alertado sobre as técnicas de controle implantadas pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, mas Chris Wylie revelou o uso político dos dados coletados pelo Facebook e extraídos pela Cambridge Analytica.

Já não se trata de vender produtos, mas de mudar efetivamente o nosso comportamento e as nossas intenções de voto. O capitalismo, que encontrou seu ambiente natural nas liberdades garantidas pela democracia, foi então transformado na mais perigosa ameaça à democracia. Na medida em que muda nosso comportamento, a lógica de controle por meio dos megadados [big data] também afeta o laço social, moldando-o.

Durkheim argumentou que a divisão do trabalho no capitalismo industrial dá forma a novas modalidades de relacionamento social à medida que as unidades familiares desaparecem como organização autônoma do trabalho. Da mesma forma, no capitalismo da Internet, o conhecimento é dividido de forma assimétrica. De um lado, estão os poucos que sabem gerenciar os processos de TI ocultos nos aplicativos que usamos no dia a dia. Do outro, está a massa daqueles que os usam; os dados tornam-se presas grátis para um mercado cada vez mais voraz.

Consideremos os pressupostos dessa gestão total da esfera íntima de nossa existência, feita desses dados extraídos. Isso é claramente explicado pelos agentes dessa predação em larga escala. Chris Wylie, em uma entrevista, conta como os cientistas da computação são capazes de criar um clone de nós mesmos e modificar nossos comportamentos.

Um exemplo poderia ser o experimento Contágio realizado pelo Facebook em 2014, quando os feeds de notícias de cerca de 700.000 usuários foram alterados, sem o seu consentimento, para verificar a possibilidade de que um “contágio” emocional pudesse ocorrer mesmo sem a presença física, e poderia realmente modificar o comportamento das cobaias.

Através do nosso clone de computador, Google, Facebook, e os outros gigantes da rede que vão aparecendo gradativamente neste mercado, assim acreditam que podem reger nossa conduta e nossas emoções guiando-nos como robôs.

É justamente nessa suposta equivalência entre clone e vida real, porém, que encontramos a rachadura no sistema aparentemente sólido da sociedade de controle baseada em megadados. Nessa equivalência, não se leva em conta a possibilidade de mentir – que não é apenas uma questão de mentir aos outros, mas também a prerrogativa do sujeito humano de mentir para si mesmo: porque ele tem um inconsciente.

Tanto Lacan quanto Freud destacam o espanto da criança quando, ao proferir a primeira mentira, descobre que não foi descoberta. Ela percebe que seus pensamentos não são um cristal transparente diante dos olhos do adulto, ela entende que há uma tela atrás da qual pode se refugiar e esconder sua intimidade mais íntima, o seu íntimo inconfessável, seus desejos e suas fantasias.

A rachadura no projeto do controle digital está na impossibilidade de levar em conta o inconsciente, o inconfessável, o fantasmático, o indescritível, o desvio [detournement] que cada um de nós exerce sobre si mesmo.

Nesse sentido, a psicanálise é o pulmão verde, a Amazônia de um mundo esmagado pelo marketing, perseguido por seduções populistas feitas para se apoderar das preferências eleitorais. A psicanálise é hoje a ecologia do pensamento e das relações sociais. Abre espaço para o encontro não planejado pelo match do Tinder, para o delírio psicótico que se torna música em Schumann, para as visões que se tornam uma pintura de Van Gogh, para a esplêndida e maluca poesia escrita por Dino Campana. Ela abre espaço para o acontecimento inesperado, a surpresa a partir da qual começa a transformação do mundo individual e socialmente.

Essas são as forças inestimáveis ​​que a psicanálise pode cultivar para resistir ao projeto de clonagem da existência, para se opor à gaiola ilusória, ao sorriso cativante que a propaganda vai tecendo e que nós, como Penélope noturna, podemos desvendar secretamente.

 
Tradução: José Wilson Ramos Braga Jr.
Revisão: Leny M. Mrech
 
Texto republicado com permissão do autor. Publicado em inglês na Lacanian Review Online em 29/02/2020 no link
https://www.thelacanianreviews.com/the-social-bond-in-the-hyper-connected-world/