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Leny Magalhães Mrech (EBP/AMP)

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Uma fala revela muito o que ocorre com uma criança, um ser falante e, algumas palavras de uma criança de 10 anos, permitem investigar o que tem acontecido com ela no chamado ensino à distância. Essa modalidade de ensino tem sido utilizada pela rede pública para crianças de variadas idades para substituir o ensino presencial em época de pandemia.

A educação à distância não é nova. Tradicionalmente, a sua utilização apresenta algumas especificidades. Considera-se importante na educação à distância que o aluno jamais se sinta sozinho ou desacompanhado, isso porque há sempre uma mescla entre o ensino virtual e o ensino presencial. Há momentos de encontro presencial e até mesmo virtual em que o aluno pode sanar as suas dúvidas. Com isso, o ensino não se apresenta apenas de forma virtual.

Mas o ensino feito atualmente com as crianças é realmente um ensino à distância? Será que ele preenche os requisitos desse processo? O que se sabe é que, nas escolas, os alunos têm sido divididos em pequenos grupos. Um terço fica no ensino presencial e o restante, no ensino virtual, havendo um pequeno rodízio e se preservando, para os alunos que apresentam maiores problemas, momentos mais vinculados ao ensino presencial. Contudo, é importante assinalar que, o fato de haver uma alternância, não garante que todos os alunos recebam o acolhimento que realmente necessitariam. Até mesmo alunos com uma boa formação podem apresentar problemas atualmente, dentro do contexto educacional apresentado.

Um menino de dez anos de idade tem reclamado, em suas sessões de análise, do que tem acontecido com ele no ensino à distância. Diz não ter mais acesso aos seus colegas e à professora e, nos poucos momentos das aulas presenciais, não é possível brincar, interagir com os amigos. Nas aulas virtuais, todos têm que ficar com a câmera aberta, decorrendo daí que as reclamações se multiplicam e aparecem, tanto em relação à falta de contato, quanto em relação à dosagem do conteúdo com a qual cada criança precisa lidar.

A criança não aguenta mais tantas lições e, por meio de seus relatos, identifica-se a diluição do conteúdo teórico. Em vez de lidar com as lições de português, matemática, história, etc, ela as nomeia através de números: Hoje tenho 10 lições! E no dia seguinte revela: Hoje tenho 14 lições!

O que impacta em suas queixas é que as lições perderam sua especificidade: o que conta é o número, a quantidade. Surge, então, a questão: o que será que se aprende com isso? No Seminário 20, Lacan revela: “(…) A cultura distinta da sociedade, isto não existe. A cultura é justamente aquilo que nos pega”. (Lacan, 1982, p. 73)

Será que a cultura, a aprendizagem e a construção do saber têm apanhado de alguma forma essa criança? Lacan nos esclarece que aquilo que diz respeito à cultura futuca o sujeito, o pequeno ser falante. Quando se vivencia uma situação em que a quantidade predomina, o que ocorre é que nada fica, a não ser o cansaço. O que não se estabelece é o liame social, isso porque, revela Lacan:

“(…) No fim das contas, há apenas isto, o liame social. Eu o designo com o termo discurso, porque não há outro meio de designá-lo, uma vez que se percebeu que o liame social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante”. (Lacan, 1982,p. 74)

Graças à linguagem, a cultura, o saber se constroem, mas, para isso, é preciso que ela toque o sujeito, o ser falante. Que ela toque o seu corpo, o seu pensamento. Quando há o excesso de conteúdo, o que temos é apenas o cansaço e se instaura algo do qual o sujeito se defende frente àquilo que se apresenta em demasia.

Ao ser perguntada a respeito do que tem aprendido, a criança diz “nada”. Não se recorda. Não incorpora. Algo fica no limbo à espera de um retorno em outro momento.

Lacan revela os impasses em relação à incorporação do saber:

“(…) O que é que ele prende em sua malha, em sua rede, o que é que ele retira, e que é que ele manipula, com o que é que ele lida, com o que é que ele se bate, o que é que ele sustenta, o que é que ele trabalha, o que é que ele persegue?” (Lacan, 1982, p. 74)

O saber não se constrói de forma passiva. Ele nos cutuca, questiona, contesta, etc. Quando se privilegia o ensino quantitativo isso não ocorre. Recai-se em uma crítica comumente atribuída ao ensino tradicional: o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende!

Lacan revela no Seminário 20 que: “(…) Vou direto ao que se trata – o saber, ele é um enigma. Esse enigma nos é presentificado pelo inconsciente como tal como se revelou no discurso analítico. Ele se enuncia assim – para o ser falante, o saber é o que se articula”. (Lacan, 1982, p. 188)

Trata-se de uma articulação que não ocorre para a criança. Ela não retira um saber das suas lições, ela não consegue fazer laço com ele: o que se tem é uma massificação que exclui o sujeito, que exclui o ser falante. Seu corpo apresenta um sintoma: o cansaço. Estamos na ordem do excesso, de um gozo regendo as instituições de ensino, gerando um não querer saber nos alunos e uma vontade de desistência.

Alcançar os alunos, dialogar com eles, é o que falta. O ensino que se diz à distância ficou mesmo à distância. Uma repetição de à distância do aluno, distância do saber, distância do contato. Temos, então, um ensino para quem? Um ensino que acaba se tornando mecânico, maquínico. Um ensino pro forma, para aparentar que a tarefa foi cumprida.

Os professores exigem que as câmeras estejam ligadas porque sabem que os alunos se desligam. A tensão do visual por horas continuas é da ordem do insuportável. Os alunos são obrigados a olhar apenas para o professor, o que não quer dizer que estejam lá e que não devaneiem. Há um excesso.

Na aula presencial era possível observar a mosca voando, os colegas, o quadro negro, o professor, etc. Na aula presencial o olhar vagava para qualquer coisa. Ele estava livre. Na aula virtual o aluno tem seu olhar aprisionado pela telinha. Resta o que ele pode olhar em casa. Mas, rapidamente é chamado à atenção pelo professor e tem que voltar para a telinha, se focando nela, única e exclusivamente.

O que se deduz é que estamos realmente em um ensino ou educação à distância. À distância do aluno, à distância do professor, à distância do ensino.

Chega-se então, finalmente, a que não se sabe lidar com o aluno como um ser falante em toda a sua singularidade, como alguém que é um sujeito cindido e que tem um corpo, alguém que se apresenta em sua singularidade e que não pode ser reduzido ao aluno universalizado enquanto mais uma cifra, mais um número contabilizado nas estatísticas.

A Psicanálise do último ensino de Lacan nos confronta com as modalidades de gozo. A educação atual, no ensino durante a pandemia, tem a sua modalidade de gozo: ela se tornou maquínica, mais perto dos aparelhos que a transmitem, mais distante dos seres falantes. Nesse sentido, as reflexões de uma criança tornam evidente o que ela não consegue perceber, apenas intuir: que ela se perdeu nesse saber com o qual não consegue fazer laço. Uma educação à distância que queira estar perto dos seres falantes tem que levá-los em consideração antes do conteúdo, para que não haja o risco de jogar o bebê fora com a água da bacia.


Bibliografia
Lacan, Jacques – O Seminário – livro 20 – Mais, Ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1982.