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A CRIANÇA COM LAUDO: O PAPEL DA ESCOLA NA MEDICALIZAÇÃO DAS CRIANÇAS

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Emanuelle Garmes (Psiquiatra, CLIPP)

Nas escolas brasileiras cresce uma nova forma de nomeação: criança com laudo. Esta é usada para designar os estudantes que precisam de recursos pedagógicos adicionais: mais tempo para fazer provas, aulas de reforço com tutores, abordagem diferenciada dos professores em caso de distrações, ou comportamentos mais agitados em sala de aula.

A escola, diante das crianças com dificuldades de aprendizado ou comportamentais, demanda aos pais que providenciem um laudo com diagnóstico médico. Só então, a escola dará início ao projeto pedagógico diferenciado para aquele estudante. A prática é considerada ilegal, exceto em caso de autismo. Mas por que a exigência de um laudo para um projeto pedagógico melhor pensado para o aluno? Essa parece fazer parte da engrenagem que tem inflado o número de crianças diagnosticadas com “Transtorno de Déficit de Atenção” e “hiperatividade” e medicadas com psicoestimulantes como metilfenidato (nome comercial, ritalina) 1.

O Brasil é o segundo maior consumidor de Ritalina do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos 2. Apesar disso, pesquisadores brasileiros consideram que as crianças ainda não estão sendo devidamente medicadas 3. No texto “O TDAH é subtratado no Brasil” os autores defendem que há um déficit significativo de prescrição de anfetaminas para as crianças brasileiras. Há aí a interpretação unívoca de que os sintomas de desatenção e hiperatividade resultam apenas de alterações neurobiológicas. Na mesma direção, o pedido de laudo médico pela escola endereça uma demanda implícita aos cuidadores da criança: providenciem medicação. Essa solução reducionista visa responder ao enigma imposto pelos alunos com fracasso escolar e a diminuir a responsabilidade da escola diante desse mal-estar complexo, que desliza entre explicações psicodinâmicas, sociológicas, antropológicas, econômicas, nutricionais e neurobiológicas 4.

A escola pede que a criança fique sentada horas a fio para escrever e decorar matérias, com pouco espaço para o uso do corpo, da criatividade, da troca entre os pares e invenção. O brincar perde espaço para um programa escolar que atende à lógica de mercado ditado pela eficiência e pelo resultado pragmático. No entanto, o processo de subjetivação da criança se empobrece sem o brincar.

Freud em “Além do Princípio do Prazer” apontou o papel do brincar na resolução dos sofrimentos da criança. Seu neto Ernst chorava inicialmente quando a mãe saía para o trabalho, mas através do jogo do fort-dáá não chorava mais. Através do jogo foi possível o trabalho de simbolização da ausência da mãe: “A criança se ressarcia no ato, colocando em cena a mesma desaparição e retorno com os objetos que encontrava a seu alcance 5.

Além disso, é crescente a dificuldade em transmitir o saber para alunos que consideram a internet a verdadeira fonte de conhecimento, como aponta Ana Lydia Santiago em “Procrastinação, autoerótica e depreciação: sintomas dos jovens com relação ao saber” 6: “O saber não é mais do Outro nem relativo a desejos deste. Assim, não mais é preciso seduzir, ser obediente ou ceder à exigência do Outro, e o saber passa a incluir alguma atividade, de preferência autoerótica.”

O aluno, sem requerer a mediação do adulto para aquisição de saber, coloca os professores diante do crescente desinteresse escolar. A insatisfação dos professores frente a essa realidade incrementa a prática de “fazer diagnósticos” de TDAH em sala de aula, como bem desejam, e incentivam as indústrias farmacêuticas 7.

Ademais, em tempos de enfraquecimento do Nome-do-pai, da escola é exigida uma função estruturante de limitar o gozo das crianças, visto que os cuidadores não conseguem fazê-lo, adicionando mais um ingrediente à demanda por medicações que reduzam a inquietação de crianças.

A criança com laudo é sobretudo uma criança medicada.

 

Referências:

1. Phillips CB (2006) Medicine Goes to School: Teachers as Sickness Brokers for ADHD. PLoS Med 3(4): e182. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.0030182

2. SILVEIRA, Rodrigo da Rosa et al. Patterns of non-medical use of methyphenidate among 5th and 6th year students in a medical school in Southern Brazil. Trends Psychiatry Psychother. 2014; 36(2):12

3. (MATTOS, Paulo e ROHDE, Luis Augusto e POLANCZYK, Guilherme V. O TDAH é subtratado no Brasil [Carta]. Revista brasileira de psiquiatria. Disponível em

https://www.scielo.br/j/rbp/a/HstpzTsJC37rSqwWfT57SgJ/?format=pdf&lang=pt).

4. Collares, C. A. L., & Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez.

5. (Freud, 1920a/1982, p.26). Freud, S. (1982). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão,

trad., Vol. 18, pp. 13-156). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920a).

6. Ana Lydia Santiago em Procrastinação, autoerótica e depreciação: sintomas dos jovens com relação ao saber6 disponível em https://www.ebp.org.br/procrastinacao-autoerotica-e-depreciacao-sintomas-dos-jovens-com-relacao-ao-saber1/

7. Novartis Pharmaceuticals Corporation (2005) If parents ask…. Available: http://www.adhdinfo.com/info/school/caring/sch_if_parents_ask.jsp. Accessed:19/Dec 2005.