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Atualidades Psicanalíticas #015

Finnegans Wake: Um Sonho de Joyce – e seu Real *

Por Howard Rouse

Na terceira parte do Seminário XXIII: O Sinthoma, intitulado por Jacques-Alain Miller “A Invenção do Real”,1 e especialmente em seu capítulo do meio, “Do sentido , do sexo e do real” – em si uma elaboração de ideias expostas pela primeira vez no ano anterior na conferência “Joyce, o sintoma” 2 – vemos Lacan preocupado com o tema dos sonhos. Em primeiro lugar – e isso não acontece muito nos seminários de Lacan – com um de seus próprios sonhos. Em segundo lugar, e mais extensivamente, com Finnegans Wake como o texto do sonho de Joyce. Como decifrar e cifrar esses dois sonhos? E o que essa decifração e cifração nos ensina sobre nossa abordagem dos sonhos enquanto tal?

O próprio Lacan sonha, na noite anterior a seu seminário em 16 de março de 1976, com um “modo fácil de apresentar Joyce”. O trabalho de Joyce é estimulante, ele nos diz, porque sugere a possibilidade de tal apresentação. No sonho, Lacan está compartilhando com o público de seu seminário a maneira pela qual ele julga personagens (personagens literários principalmente, presumimos, mas também outros) que não são seus. Mas este sonho mostra Lacan – evidentemente [évidement], diz ele, revelando algo ao esvaziá-lo –, que ele não tem parte nisso, que está, no sonho, extrapolando seu papel. Mais precisamente, Lacan está se engajando no sonho em uma espécie de “psicodrama”, procurando conexões instáveis, poderíamos supor, entre Joyce, seus personagens e o público do seminário. Desse modo, o valor desse sonho é que ele funciona como uma interpretação: certamente não é essa a maneira de abordar a obra de Joyce e encontrar, se possível, a maneira fácil de apresentá-la.

Mas por que não? Lacan fornece a resposta um pouco mais tarde. Referindo-se especificamente a Finnegans Wake agora, ele nos diz que “o sonhador não é um personagem qualquer, ele é o próprio sonho”. O que isto significa? Todo mundo sabe que Finnegans Wake , esse livro da noite que se opõe a Ulisses como livro do dia, é suposto ser a narração de um sonho. Toda a questão, entretanto, é: quem está narrando? Em princípio, podemos responder, o sonho é um sonho de Humphrey Chimpden Earwicker, supostamente o protagonista principal do livro. Mas todos também sabem que esse nome, quando reduzido às suas iniciais, e como todos os nomes do livro, passa por um processo de pluralização aparentemente infinita. H.C.E. tem um total de 216 representações diferentes em Finnegans Wake (com o plural, não o possessivo, do título do livro também servindo, é claro, como um índice antecipatório disso). Não é necessário listar essas representações,3 simplesmente dizer que a mais importante é a seguinte: “Lá vem todo mundo” [Here Comes Everybody]. O sonho, como o sonho de Joyce para além do sonho de Earwicker, também deve ser lido como o sonho de toda a humanidade. Os comentários do próprio Joyce sobre seu trabalho revelam que essa era, sem dúvida, sua intenção. Como diz Lacan em “Joyce, o sintoma”, Joyce “identifica-se”  com o individual 4, com o U.O.M. (outras três iniciais), enquanto tal.

É exatamente aqui que Lacan localiza o que chama muito enfaticamente de “debilidade mental” 5 do sintoma de Joyce. O problema para Lacan é que essa peculiar pluralização do sujeito do sonho em Finnegans Wake cai, inexoravelmente, nas garras de uma concepção do inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo, Lacan chega a dizer, constitui uma parte do sinthoma de Joyce . Brincando com um trocadilho que o próprio Joyce faz em Finnegans Wake , podemos dizer que ele era “yung”, mas não tão “easily freudened”. Ou que se, como Lacan brinca em “Joyce, o sintoma”, ele certamente “freudened” [freudianizou] sua “fredonnement” (cantoria), isto é, introduziu camadas de sentido freudiano na materialidade ressonante – a motérialité – de seu estilo, então ele só fez isso com “repulsa”,6 uma repulsa que ele, aparentemente, não experimentou por mais delírios junguianos.

E se o sonho de Joyce “desliza … desliza … desliza até Jung”, então também “não fracassa – incrivelmente – em cair no mito de Vico que sustenta Finnegans Wake”. Este mito é o mito da circularidade. A circularidade que a Scienza Nuova vislumbra na passagem supostamente histórica e progride de uma era Teocrática para uma Heroica, para uma Humana, para uma Providencial – e então, é claro: de volta ao início; a circularidade que aparece na primeira frase reiniciada de Finnegans Wake como “um vicus cômodo de recirculação” que o liga à última frase literalmente interminável do livro. Como diz Lacan, “como dizer que Finnegans, este sonho acabou, já que sua última palavra não deixa de se remeter à primeira indicando uma circularidade, o “the” no qual esse livro termina é aliciado pelo “riverrun” com o qual ele começa?” 7  Por fim, o sonho desse mito da circularidade também pode dar passagem, e definitivamente deu em Joyce, a um fascínio pelo que Lacan designa como “coisas que são ainda piores”.8 O espiritismo de Madame Blavatsky, por exemplo, e o “sangramento difuso” de sua crença na iniciação em um mundo do qual sua possibilidade foi definitivamente exilada (JAM comenta amplamente sobre isso na “Nota Passo a Passo” 9 que acompanha o Seminário XXIII).

Podemos talvez protestar contra o veredito de Lacan de uma “debilidade mental” pelo menos parcial em termos beckettianos. Em “Dante… Bruno. Vico .. Joyce”, um texto incluído em Our Exagmination Round his Factification for Incamination of ‘Work in Progress’, uma coleção de ensaios sobre Finnegans Wake publicada em 1929, dez anos antes de o livro final ser concluído, Beckett argumenta que o uso por Joyce de Vico “remove toda a interexclusividade rígida que muitas vezes é o perigo em uma construção pura”. Se “o perigo está na pureza das identificações”, ele reitera, então Joyce não sucumbe a ela, pelo contrário explode todos os “compartimentos” [pigeonholes].10 Em suma, o uso de Vico por Joyce é eminentemente irônico, e não devemos, portanto, levá-lo muito a sério.

Embora Beckett levante um ponto importante aqui, a respeito da questão da crença de Joyce no sistema de Vico, uma crença que é claramente impossível de determinar, seu argumento não muda o fato de que a circularidade do inconsciente coletivo, às vezes, se manifesta em Finnegans Wake de uma maneira que – se Lacan já não tivesse nos avisado sobre a aplicação desse termo a Joyce – talvez, caso contrário, sem hesitar, classificássemos como psicótico. No último capítulo do Livro III, por exemplo, Shem e Shaun, os filhos gêmeos de Earwicker e sua esposa Anna Livia Plurabelle, se desintegram em sua própria origem no coito parental. Ainda mais impressionante, no capítulo final do livro, os filhos são reabsorvidos no fluido corporal da mãe (tanto mère quanto mer aqui) e a mãe/esposa no sêmen oceano-símile de seu pai. Podemos também pensar na imagem de Stephen Dedalus, em Ulysses , da série de cordões umbilicais que ligam gerações através do canal portador de líquido do umbigo. O útero, como disse uma vez o escritor alemão Heiner Müller, não é um beco sem saída.

Essas referências ao cordão umbilical também nos permitem identificar o ponto crucial da leitura de Joyce por Lacan. Pois o que Joyce perde ao sonhar com a circularidade do inconsciente coletivo é precisamente o  . Lacan não poderia ser mais claro: “O texto de Joyce é todo feito como um nó borromeano. O que me impressiona sobretudo é que ele não se deu conta disso, a saber, que não há vestígio em toda sua obra de alguma coisa similar. Mas isso me parece muito mais um signo de autenticidade.” 11

O fato de Joyce não ter percebido o nó não significa, além disso, que ele não esteja presente por todo lado em sua escrita. Principalmente, é claro, naquela retificação geral do lapso do nó que Lacan aponta como permitindo a Joyce erigir a função de um Ego reparador; mas também em um grande número de lugares particulares sem os quais esta reparação geral seria inconcebível. O “trocadilho particularíssimo” de Joyce, 12 por exemplo, que ao expandir o princípio das palavras-valise de Carroll reúne em uma palavra nova, três ou quatro palavras que “pela forma como são usadas, se desfazem em faíscas”,13 perdendo sentido em favor do gozo. Ou sua produção perpétua de charadas, enigmas, que Lacan escreve enunciados (énoncé) Ee,14 cuja enunciação é definitivamente impossível de desenterrar. Ou o processo de enquadramento que determina fundamentalmente, segundo Lacan, tudo o que Joyce escreveu, estabelecendo uma “relação homonímica” entre o quadro e a imagem que ele apenas supostamente contém (“O que é isso?”, alguém perguntou certa vez a Joyce, apontando para um fotografia: “Cortiça”; “E o que é isso que enquadra essa imagem?”: “cortiça”). 15 “O significante vem rechear o significado”,16 Lacan diz sobre a obra de Joyce no Seminário XX: Mais, ainda.

Essa é a maneira fácil de apresentar Joyce que Lacan procurava, e não encontrava, em seu sonho: o caminho do nó. É um caminho que divide Joyce e seu sonho Finnegans Wake, em dois. Entre o sentido, o mito e o suposto progresso de sua própria versão cíclica e coletiva (père)versão da história, seu escabelo, poderíamos dizer; e o real – essencialmente ilegível e inanalisável – núcleo, sucata, ponta ou estranho ou fim (bout) de seu sinthoma que, como diz Lacan, “não se liga a nada”. No fundo, podemos concluir com Lacan, Joyce “não evoca em nós simpatia alguma”,17 seu sintoma não nos concerne “em nada, […] não há chance alguma de ele enganchar alguma coisa do inconsciente de vocês.” Mas isso apenas “é o que prova que os sintomas de vocês são a única coisa que, tanto para vocês como para qualquer um, interessa.” 18

Aqui está uma lição radical sobre a leitura, a decifração e a cifração dos sonhos em sua orientação final para um real sem ordem e sem lei.

 

Traduzido por José Wilson Ramos Braga Jr.

1 Lacan, J. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 121-138. Todas as seguintes citações de Lacan, exceto onde indicado de outra forma, são dessas páginas.
2 Lacan, J. “Joyce, o sintoma”. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 157-165.
3 Embora possam ser encontrados em Robinson, HM “Hardest Crux Ever”, en Magalaner, M. ed., A James Joyce Miscellany . Carbondale, Southern Illinois University Press, 1959, pp. 197-204.
4 Lacan, J. “Joyce, o sintoma”. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007 p. 163
5 Ibidem, p. 164
[6] Ibidem, p. 159
7 Ibidem, p. 164
8 Ibidem, p.164
9 Miller, J.‑A. “Nota Passo a Passo”. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 199-248.
10 Beckett, S., et al. “Dante… Bruno. Vico .. Joyce ”. Our Exagmination Round His Factification for Incamination of Work in Progress . London, Faber, 1972, pp. 3-8.
11 Lacan, J. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 149. 
12 Lacan, J. “Joyce, o sintoma”. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 160.
13 Ibidem, p. 161
14 Ibidem.
15 Lacan, J. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 144.
16 Lacan, J. Seminário XX: Mais, ainda . Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 51.
17 Lacan, J. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 147.
18 Lacan, J. “Joyce, o sintoma”. Seminário XXIII: o sintoma . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 161.

Figura: Finnegan’s Wake at 80: In Defense of the Difficult – By Susie Lopez. May 3, 2019. Publicada no site online Literary Hub acesso pelo link https://lithub.com/finnegans-wake-at-80-in-defense-of-the-difficult/#top
 Texto originalmente redigido em espanhol sobre um dos temas – “Sonho e Real” – escolhido para a preparação do Seminário Internacional de Outono da ELP (Escuela Lacaniana de Psicoanálisis): A Prática Psicanalítica Hoje. Invenção e Real. Publicado originalmente em espanhol no link https://elp.org.es/eventos/otras-actividades-de-interes/oa-seminario-internacional-de-otono-elp-2020/
 Texto republicado com permissão do autor. Publicado em inglês na Lacanian Review Online em 13/12/2020 no link https://www.thelacanianreviews.com/finnegans-wake-a-dream-of-joyce-and-its-real/