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ISSN : 2966-2745

Editorial

Editar é um ato político. A cada passo na construção da Revista Cairel constato como se trata, antes de tudo, de um trabalho cuja essência é a política. A política pensada como a possibilidade de existir em conjunto. O ser humano é um animal político, disse Aristóteles, o que implica sermos seres sociais por natureza, buscarmos continuamente algo comum, compartilhado.

O inconsciente é a política, disse Lacan; é o discurso do Outro.

Tecer fio por fio a Revista Cairel é percorrer os meandros daquilo que a Clipp produz hoje e produziu ao longo dos anos; ir ao encontro de momentos muitas vezes esquecidos, gravações guardadas no fundo das gavetas; fazer um esforço conjunto de memória, procurando traçar caminhos já trilhados, mas escondidos num canto longínquo da lembrança. É enfrentar a árdua tarefa de supor o que vale a pena tornar público de tudo o que se realizou, e saber que o fracasso é inevitável, pois a cada escolha, tantas outras possibilidades, tão boas ou melhores, ficam relegadas.

Este segundo número da Cairel impõe um desafio suplementar: suceder a Dora, em sua exuberância histérica, não é fácil, sobretudo para falar da neurose obsessiva. O neurótico obsessivo está enclausurado em sua fortaleza, hiper protegido. Contudo, percorrer seus labirintos revelou caminhos, os mais surpreendentes e instigantes, embora tortuosos.

Talvez a frase de Lacan mais citada nos textos que se seguem seja aquela, célebre, em que afirma que não é certo que a neurose histérica ainda exista, mas há certamente uma neurose que existe, a que chamamos neurose obsessiva. Se a histeria virou discurso, onde localizar a neurose obsessiva?

As páginas que se seguem tentarão responder a essa pergunta, não sem esquadrinhar os meandros, nem sempre – ou quase nunca – evidentes dessa neurose, que Freud considerava mais interessante do que a histeria, por implicar um modificação no eu para dar conta da exigência pulsional.

Freud levou cinco horas, no primeiro congresso internacional de psicanálise, realizado em Salzburg, em 1908, para apresentar o caso do Homem dos Ratos. Cinco horas para demonstrar como a psicanálise aí teria sido bem sucedida, diferentemente de Dora, cuja análise se interrompera abruptamente, sem um desfecho satisfatório. Daí infere-se a importância do caso para Freud, que tentava convencer uma comunidade ainda incipiente e em formação da importância da psicanálise. Grande parte do arcabouço da psicanálise ainda estava por vir, mas muito já se anunciava no caso do Homem dos Ratos.

Seguimos com a proposta de trazer para a Cairel a produção da Clipp, a partir do argumento do Curso de Psicanálise do Instituto, em que são tratados, a cada módulo, um dos cinco casos paradigmáticos de Freud: Dora, Homem dos Ratos, Pequeno Hans, Schreber e Homem dos Lobos. Além de artigos dos associados da Clipp, nesta edição há duas conferências de colegas da EBP – Romildo do Rêgo Barros e Elisa Alvarenga– ambas estabelecidas a partir de conferências proferidas em atividades de abertura do semestre. Fomos ainda mais longe: contamos com um artigo inédito da colega da EOL, Ruth Goremberg, e dois capítulos do livro O obsessivo e seu despertar, de Gil Caroz, da ECF. Por sua contribuição e imensa generosidade, não temos palavras para agradecer. Ainda assim, tentamos: muito obrigada!

Talvez o ponto alto desta edição seja o artigo do querido colega Ariel Bogochvol que nos deixou em 2022. Ariel coordenava o curso Psicanálise em Tempos de Guerra, desenvolvido pelo Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicopatologia e Psicanálise (NEPPSI) da Clipp. A aula que ministrou em 12 de agosto de 2022 está aqui reproduzida. Continuamente preocupado, como cidadão, com o aprofundamento de movimentos de extrema direita no Brasil e no mundo, Ariel, também como

psicanalista, expôs seus temores de como o ideário fascista pode afetar a psicanálise. Seu texto nos faz mergulhar numa conjuntura da qual não podemos nos esquivar e nos obriga a encará-la de frente. Leitura mais que desejável: obrigatória.

O encontro do humano com a linguagem e com os valores e percalços civilizatórios nos introduz inexoravelmente na “dor de existir”. Gil Caroz lembra Lacan quando afirma que, no momento em que o sujeito se encontra com o significante, já não pode retroceder ou recuar, não pode mais dizer: “não vou jogar”. Por isso, a dor de existir é correlativa à morte como ponto de detenção. A única esperança é que algum dia vamos morrer. Mas, enquanto isso, vivemos. As saídas encontradas pelo obsessivo para trilhar esse caminho é o que aspiramos transmitir nas páginas subsequentes.

Esta publicação quer compartilhar o trabalho que vimos realizando ao longo de mais de vinte anos na Clipp. Anseia tornar público momentos de transmissão viva e entusiasmada da psicanálise e outras contribuições que a eles se unem para incrementar e irradiar a causa psicanalítica trabalha-

da no Instituto. De que valeria, pois, guardar tudo isso num canto escondido? Afinal, “a verdadeira felicidade só é real quando compartilhada”, como disse o poeta Henry Thoreau, nesta frase lembrada pelo personagem do filme “Na Natureza Selvagem”, após aventurar-se num isolamento absoluto na paisagem inóspita do Alasca.

Daniela de Camargo Barros Affonso, editora