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Entrevista Anaële Lebovits-Quenehen – Verdade e pós verdade

Imagem: Instagram @shariq.nordin

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1. Sabendo que a verdade mente porque ela pertence ao registro do simbólico e seu caráter mentiroso é o preço que ela paga por não pertencer ao registro do real, há alguma maneira de a verdade não mentir?

Resposta: esta pergunta me agrada, pois eu posso respondê-la por um radical: Não. Não há nenhuma maneira de a verdade não mentir pelo menos que seja do meu conhecimento. Mas a verdade mentirosa é suscetível de mentir de modo mais ou menos justo, de forma melhor ou pior, mais ou menos verdadeiramente. Partindo da constatação de que a verdade não é o real, mas que a articulação significante engana o real que ela visa; que a estrutura engana necessariamente o vivente do corpo gozante, a verdade é condenada a mentir. Mas a verdade testemunha melhor ou pior o real segundo os meios em que ela se dá. Isto é essencial para fazer a diferença entre os diferentes regimes da verdade.

A ética lacaniana do bem dizer se situa lá, no registro da verdade. “Digo sempre a verdade”, nos diz Lacan em “Televisão”. Mesmo que ele acrescente que não a diz toda, porque dizê-la toda é impossível, ele começa dizendo que sempre diz a verdade. Entendo isso não como uma inclinação à revelação ou à confissão – a relação de Lacan com a verdade não tem nada a ver com isso – mas sim como a afirmação de que seus enunciados visam à redução máxima do espaço que separa estrutura e real. O desafio da relação que cada um sustenta com a verdade é ético, e não é sem efeito sobre o estado de espírito. É uma tese forte de Lacan que não é enunciada explicitamente, mas Jacques-Allain Miller nos coloca neste caminho. Alegre ou triste, o sujeito está em função de sua relação com o real, e como a verdade é um dos meios de envolver este real, então a relação que mantemos com a verdade é mais ou menos alegre ou mais ou menos triste.

A alegria produz o esforço de bem dizer, perceptível no semi-dizer, quando a aflição está no encontro de uma grande desconexão entre verdade e real. Digamos que há uma certa alegria no fato de se levar em conta a impossível relação entre verdade e real, sem renunciar, no entanto, à indexação de uma pela outra. Constatar a impotência da verdade é ficar, ao contrário, numa posição triste.

O ato analítico, que procede pela leitura daquilo que o analisante enuncia, tende a fazer emergir o real escondido na enunciação verdadeira, extraindo os equívocos. Ele visa à verdade sempre mentirosa, mas fazendo surgir o real que se situa na matéria sonora e não no sentido que ele veicula. Ali onde a verdade visa ao sentido, o equívoco toca não mais no seu significante, mas no signo (como diz Lacan no Seminário 20). Em resumo, a verdade mente, mas a leitura que se efetua pelo equívoco, não mente! Ela devolve a verdade ao litoral entre simbólico e real.

2. O que você poderia dizer a propósito desta crença popular: “quanto mais elaborada a mentira, melhor ela convence”?

Resposta: não conheço este ditado. Conheço o de Goebbles que diz: “quanto maior a mentira, mais ela passará”. Estes dois enunciados são opostos, elaborar uma mentira é fazer com que ela seja crível, é dar os meios para que se passe por uma verdade. E sem dúvida é necessário quando o Outro ao qual nos endereçamos ao mentir visa, ele mesmo, ao verdadeiro. Então a mentira deve dar ares de verdade.

Mas há casos em que a mentira pode dar ares de mentira e ainda assim ser crível. É o caso das Fakenews que estão de vento em popa nos tempos que correm. Nós acreditamos facilmente nelas porque queremos acreditar. Nós acreditamos porque as mentiras que as fakenews vendem visam ao gozo mau que queremos satisfazer a elas aderindo. É Um fato: as fakenews mentem desavergonhadamente, mas elas também sempre designam o inimigo a abater, elas localizam o mal no Outro, designam o culpável, aquele cuja erradicação deveria poder apaziguar nossos sofrimentos. Está aí a força delas. Isso explica elas não precisarem ser muito elaboradas para convencer. Os regimes fascistas sempre operaram promovendo as fakenews. O novo é elas, hoje, mesmo na democracia, irem de vento em popa.

3. Pensando no conceito de pós-verdade, seria possível dizer que se trata de poder dizer qualquer coisa sem fazer referência aos fatos? Ou ainda, poderíamos dizer que as opiniões pessoais tomaram o lugar dos fatos?

Resposta: A pós-verdade nega os fatos, é verdade. Se olharmos as mídias tradicionais, elas sempre deram leituras diferentes do mesmo acontecimento. Dependendo de a mídia ser de esquerda, de direita, de centro, de extrema esquerda etc, não haverá a mesma leitura de um acontecimento. Segundo suas inclinações, seu modo de gozar, os consumidores de informações vão em direção à mídia que tem mais afinidade com eles por interpretar o acontecimento no sentido que eles gostam e querem ouvir. Mas a pós-verdade não para nisso. Ela não se restringe a interpretar o acontecimento, ela o inventa ou o nega, ela dá as costas à realidade comum para inventar uma outra. Creio que ela recusa este real que a realidade comum trata pela informação.

A informação, com efeito, é uma maneira de integrar os acontecimentos traumáticos à realidade construindo um discurso que dê conta deles, procurando suas causas, tentando compreender suas causas. A informação, qualquer que seja sua orientação, procura dar conta das emergências traumáticas da atualidade. O 11 setembro é um exemplo paradigmático. Um trauma que suscitou muitas informações e fakenews ao mesmo tempo. Quando a informação tentava explicar o traumatismo inexplicável, as fakenews recusavam sistematicamente o real do trauma de maneira a nos poupar de senti-lo como trauma. Então a realidade dos adeptos da pós-verdade é marcada por isso, tornando-a delirante, e não se distingue mais o verdadeiro do falso, a realidade do delírio.

Tudo isso é na verdade dependente da relação que mantemos com o real e sua dimensão traumática: nós o recusamos ou fazemos dele um lugar na realidade que vivemos? Um real faz-se objeto de uma foraclusão ou de um simples recalque? O recalque está a trabalho desde que o real tenta se integrar à realidade. Mas é a foraclusão que opera quando ele não acha seu lugar ou quando ele acha seu lugar ao preço uma deturpação que visa desnaturalizá-lo. Então, ele reaparece ali, no real, sob a forma de uma realidade da qual não compreendemos mais nada, a não ser que um Outro enganador e mau a habita, e do qual é necessário se livrar.

É este Outro que toma para ele a emergência traumática e a invasão que ela constitui. Livrando-se dele, pensa-se poder se livrar do real do trauma. Uma intrusão toma, então, a aparência de outra!

Tradução: Paula C. V. Caio de Carvalho
Revisão: Daniela de Camargo Barros Affonso