Kátia Ribeiro Nadeau (CLIPP)
Apresentada por Lacan no Seminário livro 23, o sinthoma 1, a histeria rígida está inserida no capítulo “De uma falácia que testemunha o real”.
A reformulação conceitual da histeria toma novos rumos durante a elaboração dos seminários 23 e 24 2. Laurent 3 aponta que após o seminário sobre Joyce, a proposta lacaniana é ler os estudos sobre a histeria “pelo avesso”. Nas elaborações freudianas, a histeria sustenta-se no complexo de Édipo e no Nome do Pai, onde a identificação e o amor ao pai desempenham funções cruciais no modo de apresentação do sintoma histérico. Lacan, por sua vez, fará valer a vertente real na histeria daquilo que, inscrito como um traço, insiste e retorna no mesmo lugar.
Tomando o caminho inverso ao de Freud, que apresentou a histeria fazendo um percurso do significante ao Pai, a partir de Lacan, deve-se lê-la ao seu avesso, do Pai ao significante como causa de gozo. Logo a histeria nos ensina sobre algo do sintoma que não passa pelo pai.
Laurent 4 afirma que a questão de nossa época é que o amor ao pai não se constitui mais como um eixo exclusivo em torno do qual se produz o sintoma histérico. Para além do sentido que resolve os enigmas e os problemas do gozo, a histeria rígida revela com clareza uma histeria que não faz existir o pai real pela via do amor. Hélène Cixous, autora da peça O retrato de Dora, citada por Lacan no seminário 23, estabeleceu o termo “escrita feminina”, inaugurando na Universidade Paris VIII o programa de doutorado sobre Estudos Femininos.
A Dora apresentada por Freud e por Hélène Cixous são histerias distintas. A histeria freudiana, sustentada no Nome do Pai e nas referências clássicas do complexo de Édipo, no amor ao pai, na identificação viril, difere do rechaço à função de intérprete que Freud tenta ocupar em suas tentativas de localizar a significação fálica dos sintomas de Dora. No texto da peça, Dora trata do trauma sexual ocorrido aos 14 anos com o Sr. K. Seu relato tenta acessar algo do indizível que se produz no corpo.
O que toca Lacan ao assistir a peça é a forma como os atores se apresentam, é o próprio ato dos corpos em cena. Para além do texto, o dizer com os corpos dominou os atores e Lacan. Uma encenação com destaque para o corpo fará Lacan destacar ali, uma histeria muito particular: a Dora de Cixous era uma histérica e trazia os mesmos sintomas e elementos da Dora apresentada por Freud: trauma aos 14 anos, a bofetada da cena do rio, a paixão pela Sra. K, mas a materialidade e a rigidez eram elementos centrais na descrição desta histeria.
Na histeria clássica, Lacan propõe, como seu intérprete, o pai, a “armadura de amor ao pai” que lhe dá estabilidade.
Na histeria rígida, o nó borromeano mantém enlaçados os três registros (RSI) sem o quarto elemento, o Nome do Pai ou o sinthoma. Esta histeria se sustenta sozinha.
Laurent 5 diz que se trata de uma cadeia e que nela há uma apreensão do gozo e do sentido sem necessidade de passar pelo Nome do Pai, pelo amor ao pai ou pela identificação ao pai.
A histeria rígida sustenta-se sozinha na repetição do significante único, S1, como traço que fixa o gozo no corpo, sem a referência ao S2. Aqui o sintoma não se dirige mais ao Outro, mas sustenta-se na repetição do UM, como letra de gozo. Se no último ensino, o sintoma tem uma dupla vertente – uma que se organiza pelo simbólico e a outra pelo real do corpo, na cadeia borromeana rígida, Lacan diz que o importante é o real, evidenciando a vertente real do sintoma.
J-A. Miller em Biologia Lacaniana 6 trabalha a relação entra as palavras e os corpos, onde a materialidade é o sintoma como tal, separado do sentido. Sobre a materialidade na histeria, Lacan indica que o sintoma histérico clássico é endereçado ao Outro, um sintoma que fala, portador de um sentido. Na peça, ela é material por estar disjunta do sentido. O sintoma se sustenta no UM sozinho, no significante em sua moterialidade – neologismo cunhado por Lacan em 1975, na Conferência de Genebra sobre o sintoma 7, para transmitir a materialidade do significante e seus efeitos, sustentado em sua vertente pulsional, traço de gozo que não porta e nem demanda um sentido.
A escrita e a letra estão no campo do real e o significante no campo simbólico. O que não pode ser acessível à fala, o que não pode ser falado, pode ser escrito.
A partir da formulação do sinthome, as bases da clínica do falasser se endereçam ao gozo e seus modos de enodamento, onde o sintoma passará a ocupar o lugar não mais encarnado em uma metáfora de sentido, mas em um acontecimento de corpo sem sentido que lhe dará sustentação, escrita do gozo no corpo. O que foi inscrito pelo significante no corpo pede escrita. “O um da existência está ligado a um efeito de escrito e não a um efeito de significação”8. O significante opera separado da significação, a letra não se refere a nenhum significado e faz borda e furo entre o simbólico e o real do corpo; essa é a escrita do real e da repetição de um gozo.
As palavras inscrevem no corpo os efeitos dos afetos ali cifrados, e os traços para sempre insistentes, ao ponto de o corpo da letra escrever esse gozo impossível de simbolizar onde apenas “incorporada é que a estrutura faz o afeto”9.
*Cartel: Histeria Rígida
1 LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma J. Zahar Ed., RJ, 2007.
2 LACAN, j. Seminários 23 e 24 O sinthoma (op. Cit.) e L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, aula novembro /1876.
3 LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo (2012) Arg. VI, Enapolin Silicet, 2014, Grama Ediciones.
4 Ibiden
5 Ibiden
6 MILLER, J.A “Biologia Lacaniana e acontecimento de corpo” In: Opção Lacaniana, 41, 2004.
7 LACAN, J “Conferência em Genebra sobre o sintoma” In: Opção Lacaniana, 23, Ed.Eolia, 1998.
8 MILLER, J.A Curso O ser e o UM, aulas 8, 9, 10 (2011).
9 LACAN, J “Radiofonia” In: Outros Escritos, (1981) RJ, J. Zahar, 2003, p.406.