Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri[2]
Pouco antes do relatório de Roma[3] que marca o início de seu ensino público, em oito de julho de 1953, Lacan faz uma conferência[4] na Sociedade Francesa de Psicanálise. Segundo Miller, na introdução do texto, Lacan inspira-se em Lévi-Strauss[5]quando este define um inconsciente sem conteúdo, função simbólica que imporia leis estruturais, tanto aos elementos não articulados da realidade, quanto às imagens acumuladas por cada um. Para além de Lévi-Strauss, vê-se no texto a marca de linguistas como Saussure, por exemplo, além de Hegel, não esquecendo que Lacan propõe o “retorno a Freud”, “pois não há apreensão mais completa da realidade humana que a feita pela experiência freudiana” [6].
Nessa conferência que privilegia o Simbólico, Lacan resume questões já trabalhadas anteriormente e apresenta o “nó borromeano”, enlace dos “três registros bem distintos que são … os … essenciais da realidade humana e que se chamam Simbólico, Imaginário e Real”[7],teoria que “sustentará de ponta a ponta(sua) elaboração … ao longo das três décadas seguintes” [8].
Lacan enfatiza que a questão primordial da experiência analítica localiza-se na fala e deixar de colocá-la em primeiro plano faz irromper o Imaginário, mas a análise não atua neste registro. O Imaginário, diferente da imaginação, tem a ver com as imagens e não se confunde com o campo do analisável, embora o analisável sempre encontre o Imaginário em sua fixidez.
Enfatizar o Imaginário na experiência analítica anula a função simbólica da linguagem e o instinto de morte freudiano desaparece. Lembrando Hegel, “a palavra mata a coisa”, o instinto de morte liga-se ao Simbólico.
Tratar o Simbólico que aparece na análise (sintomas, atos falhos) leva a perceber o funcionamento dos símbolos na linguagem, a partir da articulação significante e significado, o equivalente da estrutura de linguagem.
Pode-se aqui pensar em Saussure, para quem o signo lingüístico é a totalidade entre conceito e imagem acústica – esta não é um som material, mas a impressão psíquica deste som. O signo lingüístico seria uma entidade psíquica de duas faces, dois elementos unidos, um sempre reclamando o outro: significado e significante.
Lacan inverte o que se poderia chamar “matema saussureano”, colocando significante sobre significado, o que dá a primazia da imagem acústica sobre o conceito. E vai mais longe. No texto ora examinado, Lacan fala de símbolo, referindo-se ao significante numa clara oposição a Saussure[9], que afirmara ser um inconveniente usar “símbolo” para designar o signo lingüístico, face o princípio da arbitrariedade do signo.
Para Saussure, “o símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado”, sendo que ‘arbitrário’ não quer dizer que “o significado dependa da livre escolha do que fala”, mas que “o significante é imotivado, i.é,arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade”.[10]
A linguagem é desprovida de significação, o símbolo nasce com a linguagem, o que Lacan exemplifica com a “senha” e “a linguagem estúpida do amor”. No entanto o falante tem a ilusão da existência de um vínculo natural entre significante e significado, de que o significado já está dado e não depende dele, o que de certa forma é verdade, mas não toda, como sempre – numa análise o trabalho maior é desapegar significante e significado.
A fala desempenha papel essencial na mediação entre dois humanos, ao introduzir o registro Simbólico, além de permitir que se transcenda a relação agressiva fundamental apresentada pela miragem do semelhante, pois ela constitui esta mediação, dirá Lacan. Vemos aqui o recurso a Hegel[11] e à ‘Dialética do Senhor e do Escravo’, momento em que uma ‘consciência-de-si’ se depara com outra ‘consciência-de-si’, gerando uma luta por puro prestígio – caso não haja recuo de uma delas, o confronto acabará em luta de morte. Uma das duas submete-se – torna-se escravo – e reconhece a outra como senhor.
No SIR, Lacan pouco fala do Real, provocando a questão de Serge Leclaire: “O senhor falou do Simbólico, do Imaginário, mas havia o Real sobre o qual não falou”. Lacan responde que “mesmo assim, falei um pouco. O Real é ou a totalidade ou o instante esvanecido. Na experiência analítica, para o sujeito, é sempre o choque com alguma coisa, por exemplo, o silêncio do analista”.[12] O Real aparece jungido ao Simbólico e ao Imaginário, parte do “nó borromeano”, onde os três registros se sustentam mutuamente.
Não se confunda o registro psíquico do Real com a noção corrente de realidade: o Real é aquilo que sobra, o resto do Imaginário a que o Simbólico é incapaz de capturar – é o impossível. No seminário RSI[13], vê-se inversão e aprofundamento da temática que privilegia o Real, meio esquecidoem SIR. O Real aparece como o primeiro termo e Lacan trabalha com “rodelas de barbante” para teorizá-lo, pois, por não ser simbolizável, seria estritamente impensável.
Como responder a “o que é o Real?” Parece uma questão indevida visto que falada, pois o Real é mudo, impossível de ser captado pelo Simbólico ou pelo Imaginário. Mas por não ser falado, o Real não engana: falta na ordem simbólica, são os restos não elimináveis pela articulação significante – só pode ser aproximado, jamais capturado. (São Paulo, 3 de maio de 2010).
[1] Texto apresentado no Curso de Psicanálise da CLIPP: Pequeno Hans e a Síndrome do Pânico -Fobia: uma proteção
contra a angústia” (03.05.2010).
[2] Professora Convidada (EBP-SP)
[3] LACAN, Jacques. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
[4] LACAN, Jacques. O Simbólico, o Imaginário e o Real. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[5] LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural A Eficácia Simbólica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
[6] LACAN, Jacques. O Simbólico, o Imaginário e o Real, p11. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[7] LACAN, Jacques. O Simbólico, o Imaginário e o Real, p12. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[8] MILLER, Jacques-Alain. Preâmbulo, in LACAN, Jacques Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[9] SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Ed. Cultrix, 1995.
[10] SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral, p 82-83. São Paulo: Ed. Cultrix, 1995.
[11] HEGEL, G.W.F. Dominação e Escravidão. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Ed. Vozes, 1992.
[12] LACAN, Jacques. O Simbólico, o Imaginário e o Real, p 45. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[13] LACAN, Jacques. R.S.I. Le Seminaire. (texto do seminário não estabelecido), 1974-1975.