Daniela de Camargo Barros Affonso
Freud considera a própria análise formação imprescindível para tornar-se analista. Para ele, toda e qualquer análise seria terapêutica, tanto para quem procura alívio ao seu sofrimento quanto para aquele que deseja ser analista. Daí a distinção entre analista, e analista didata, ser questionável. Para Lacan, toda análise levada ao seu término seria “didática”, na medida em que produziria um analista. O próprio processo analítico pode levar o sujeito a um ponto em que o analisante vira analista. Este ponto, o “passe”, seria o final da análise e é a condição do ato de tornar-se analista – o “ato psicanalítico” seria justamente aquele em que o analisante passa a analista. Aí se encontra o desejo do analista. Este não é sem importância para Lacan, que chega a dizer em “Do ‘Trieb’ de Freud e do desejo do analista” que “O desejo do analista é o que, em último termo, opera na psicanálise”.[1]
O conceito de desejo do analista trata-se, sobretudo, neste primeiro momento, de uma resposta ao conceito de contratransferência em voga nas teorias da ego-psychology. Nestas, a relação analítica encontrava-se reduzida a uma relação dual, obrigando Lacan – como aponta Serge Cottet em Freud e o desejo do analista[2] – a insistir, em contrapartida, na função do “simbólico” no tratamento, visando atingir a ilusão de reciprocidade, dual e imaginária, da comunicação entre inconscientes e da “contratransferência”. Lacan diz, em “Variantes do tratamento padrão”[3], que “essa falsa consistência da noção de contratransferência” conduz a “desvios” com o sentido de uma identificação do analista com paciente, e, por este fato, termina por escamotear a responsabilidade daquele. Afirma: “O analista, com isto, se esquiva de considerar a ação que lhe corresponde na produção da verdade”. Ao introduzir a questão da contratransferência no Seminário 10, Lacan mostra sua preocupação quanto ao tema: “toda vez que se leva suficientemente longe um discurso sobre a relação que mantemos, como Outro, com aquele que temos em análise, coloca-se a questão do que deve ser nossa relação com esse a”[4].
Todo esforço de Lacan passa a ser no sentido de criticar esta tendência a analisar de ego a ego e procura desconstruir a ideologia de comunicação interpessoal forjando a radical diferença entre o a minúsculo, o outro igual, do campo imaginário, do A maiúsculo, o grande Outro, lugar da palavra e do significante.
Se o objetivo do analista é o fortalecimento do eu, no sentido de que haja uma dominação deste sobre as pulsões, é necessário que o próprio analista tenha atingido este ideal de perfeição. Daí decorre a definição de final de análise como identificação com o analista. O que caracteriza o desvio mais grave desta concepção é seu aspecto moralizante, uma vez que propugna ideais como o do amor genital, do “amadurecimento” da personalidade, da adaptação ao “american way of life”.
Se o analista se torna parâmetro de normalidade, seu desejo só pode ser o de formar sujeitos à sua imagem. Seu narcisismo obtura qualquer possibilidade de questionamento a respeito do desejo do analista e impede uma teorização consistente sobre o final de análise. Mas já em Freud, em “Análise terminável e interminável”, encontramos: “Geralmente o analista não atinge, em sua própria personalidade, o grau de normalidade que ele gostaria que seus pacientes obtivessem”[5]. E Lacan, em “Variantes do tratamento padrão”, completa: “(…) para assumir ser o padrão da verdade de todos e de cada dos que se confiam à sua assistência, que deve então ser o Eu do analista?”[6].
O analista, no rastro desta análise de “ego a ego”, num primeiro momento é instado a evitar os efeitos da contratransferência escondendo-se numa suposta “neutralidade”. Quanto a isso Lacan se pergunta, no Seminário 8: “Diz-se que o analista tem de ser impassível (…) Para que o analista não esteja sujeito ao fenômeno da contratransferência é necessário então uma completa redução da temática do próprio inconsciente do analista?” E acrescenta: “Não temos como formular que seja isso que coloca o analista fora do alcance das paixões”[7].
Num segundo momento, o analista passa a ser orientado a ser “causado” pelo paciente e a levar em consideração os sentimentos que este suscita nele para dirigir a análise, ou seja, a utilizar a contratransferência como instrumento da própria condução do tratamento. Duas formas de eximir-se de considerar sua responsabilidade na condução do tratamento. Quanto a isso, diz Lacan, no Seminário 11: “A transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista. Dividi-lo em termos de transferência e contratransferência, seja qual for a audácia, a desenvoltura das proposições que nos permitamos sobre esse tema, nunca passa de uma forma de eludir aquilo de que se trata”.
Se, quanto ao desejo do analista, não se trata somente de levar a análise até muito longe, decifrando ao máximo o inconsciente para que se ocupe o lugar de analista, de que isso depende então? Isso se torna possível somente na medida em que o analista for possuído “por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela”. E mais: “isso acontece. Eu teria mesmo maus augúrios, ouso dizê-lo, para alguém que jamais houvesse sentido isso. Mas, enfim, …isso não deve acontecer de maneira comum”.[8]
O desejo do analista está na base da ética da psicanálise, pois é correlato à ação do psicanalista na clínica. Em “Discurso na Escola Freudiana de Paris” Lacan diz: “É somente a partir do ato psicanalítico que é preciso situar o que articulo como desejo do analista”[9]. Este ato é o paradigma do ato em que um analisante decide ser analista, portanto ocorre paralelamente à emergência do desejo do analista. Lacan define claramente o desejo do analista como sendo um lugar. Trata-se, diz Lacan, de um lugar do qual “estamos fora sem pensar nisso”, ou seja, está fora da cadeia significante, ao lado do “não penso”, portanto fora do inconsciente. “Ao se encontrar aí já se saiu dele”: Lacan destaca dessa forma a aporia do desejo do analista e diz: o desejo do analista é articulado ao “sens-issue da demanda”, ao “sem saída” da demanda, porém grafado com “e” – sens e não sans, ou seja, ao invés de “sem” há o “sentido”.
Não é a partir da saída pelo sentido que está o desejo do analista. A saída pelo sentido está na direção contrária ao sentido da saída que é o desejo do analista, que indica a saída do âmbito da demanda, do domínio do Outro da demanda, ou seja, do sentido. O desejo do analista é impossível de ser demandado, muito menos de ser satisfeito. O desejo do analista é inarticulável na cadeia significante, nele o Outro é ausente. Diferencia-se do desejo inconsciente, atrelado à lei, constituído a partir do Édipo. No Seminário 11, atesta Lacan: o desejo do analista “é articulado à significação de um amor sem limites, pois está fora dos limites da lei”[10]. Enquanto o desejo inconsciente está atrelado a uma pergunta – Che vuoi? – e é sustentado pela fantasia, o desejo do analista é uma resposta. Ao se deparar com o sem saída da demanda, o desejo do analista surge como resposta à ausência de resposta do Outro.
O desejo do analista está além da fantasia e, portanto, não se sustenta em nada: é um lugar vazio que permite ao analisante aí instalar seu desejo, este ainda desejo do Outro.
Jacques-Alain Miller, no curso Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Entre desejo e gozo, afirma que o desejo do analista é acima de tudo a suspensão de qualquer demanda de ser. Ele não pede ao paciente que seja isso ou aquilo, que esteja em conformidade com quaisquer normas. Não quer o bem do paciente, nem tampouco curá-lo. “O desejo do analista é o de obter o que há de mais singular naquilo que faz seu ser” e isso, completa, somente se obtém “por uma ascese, por uma redução”. Não há nada de puro neste desejo, uma vez que a diferença absoluta nunca é pura, ao contrário, está conectada a uma “sujeira que contraímos do discurso do Outro e que repelimos, da qual não queremos saber”: o objeto a.[11]
Em A favor do passe ou dialética do desejo e fixidez da fantasia[12], conferência proferida em Caracas em 1980, republicada no livro Aposta no passe, de 2018, Miller anuncia que falará de “um outro Lacan”. “‘O inconsciente estruturado como linguagem’ se tornou verdade popular, talvez seja a hora de introduzir outro enfoque, de deslocar um pouco a perspectiva”, diz. Esse outro Lacan é o mesmo de sempre, continua Miller, mas é necessário retirar as consequências de sua célebre hipótese, sob pena de ver a estagnação da teoria e da instituição de psicanálise. Tais consequências dizem respeito em particular ao fim de análise e ao momento do passe.
O termo passe, utilizado por Lacan, remete a impasse, destino do final de análise para todos os sujeitos, de acordo com Freud. Para ele, toda psicanálise tropeça numa resistência irredutível. É um impasse de estrutura, que vale para qualquer sujeito, independente de sua particularidade clínica ou da habilidade do analista. Trata-se do rochedo da castração, obstáculo que, para Freud, não é contingente, mas se produz necessariamente. Estamos diante do paradoxo da experiência analítica: seu fim ideal é seu fracasso.
Lacan quis estender as análises para além deste ponto – daí o passe, em contraposição a impasse. Contudo, salienta Miller, tanto Freud quanto Lacan concordam quanto à finitude da experiência analítica, mas se diferenciam por sua “cláusula de encerramento”: em Lacan, o fim de análise comporta a transformação do analisante em analista, a passagem de uma posição a outra.
O passe implicaria um mais além da castração? Pergunta-se Miller, que prefere responder unindo Freud a Lacan. Para Lacan, o final de análise não se situa no âmbito da relação sexual, que não existe. Preserva, assim, o irredutível da castração, não querendo fazer existir a relação sexual no final de análise, como tentaram os pós-freudianos, instituindo o objetivo da genitalidade. Ao contrário, para Lacan, o final de análise depende da emergência da não-relação sexual.
Miller sublinha a dimensão da experiência analítica, até então menos enfatizada, que vai além daquela marcada pelo inconsciente estruturado como uma linguagem. O sujeito do significante está sempre deslocalizado, não se representa em uma identidade indubitável em nenhum significante, é despossuído de si em sua falta-a-ser, mas torna-se presente apenas no objeto que reveste a fantasia, em um “pseudo-ser”, o objeto a. O passe seria então a disjunção do sujeito e do objeto, ou seja, a travessia da fantasia.
Lacan não para aí, e Miller avança com ele. Em 2007, em seu curso O ultimíssimo Lacan[13], introduz a diferença entre inconsciente transferencial e inconsciente real. A definição de inconsciente real acontece no contexto de uma solidão do sujeito. Lacan a formulou no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”: o esp de um laps. Tal definição, segundo Miller, promove um furo “pelo qual todo seu ensino pode escoar”. A solidão à qual Lacan se refere diz respeito à de Freud, um solitário “incontestável teórico do inconsciente”´. Incontestável não no sentido de que nunca tenha sido contestado, mas, pelo contrário, por não estar nem aí para quem o contesta. Diz Miller: “Os outros não contam. Quando se trata de determinar um ponto, um lugar, um posto, os outros não têm importância”.
Miller afirma que se há outro exemplo notável de solitário na história da psicanálise, é o próprio Lacan, haja vista sua célebre frase quando da criação da Escola: “tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica”. E complementa: “Isso põe os analistas freudianos e lacanianos em uma posição que se verificará cada vez mais na história, a posição de parasita, parasita da solidão”. Somos, então, parasitas da solidão. Se o parasita é aquele que se hospeda no interior de outro organismo do qual retira nutrientes necessários para a sua sobrevivência, logo, podemos inferir que nos aproveitamos da solidão. Tiramos vantagem dela. É por situarmos o Outro em certa posição de “desimportância”, que podemos romper com qualquer ordem preestabelecida, seja da saúde mental, seja do humanismo, enfim, daquilo que poderia ser considerado o “bem” do paciente. Só assim, opera o desejo do analista, de levar o paciente à sua mais radical singularidade.
No ultimíssimo Lacan, desenvolve Miller, o passe corresponde à passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real. A função do esp de um laps, do lapso como formação do inconsciente, já não tem qualquer possibilidade de sentido ou de interpretação. Pensava-se com Freud que, com o término da análise, o sujeito continuaria se analisando na solidão – sem o analista – mas às vezes seria necessário recorrer novamente ao analista, ou seja, experimentar mais um pouco do “inconsciente transferencial”. Lacan propõe outra via, a de estabelecer uma relação entre inconsciente real e a causa analítica. Seria o “passe bis” que se orienta no sentido contrário: do inconsciente real ao inconsciente transferencial. Trata-se de uma nova transferência, desta vez com a análise – e não com o analista. Miller salienta que de alguma forma Lacan concebeu o passe bis como uma forma de “alívio” do peso decorrente da transposição do inconsciente transferencial ao inconsciente real. O passe bis seria a histoerização da própria análise. Este jogo de palavras com historização e histerização parece indicar que o sujeito voltaria a uma certa posição histérica para passar uma história que, no entanto é mentirosa – daí Lacan falar de uma verdade mentirosa à qual se apela para poder histoerizar no passe.
Na perspectiva do inconsciente real, há fim de análise quando há satisfação. Trata-se de uma satisfação que pressupõe uma transformação do sintoma, para dele obter satisfação. Em “Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI”[14], Miller diz que uma análise associa um saber ao sintoma e, desse modo, obtém uma suspensão do sintoma a qual, entretanto, nunca é completa. Há os chamados restos sintomáticos, que abrem caminho para o conceito de sinthoma. “O sinthoma, à diferença do sintoma, jamais é eliminado”. E Miller indaga: “a questão é em que medida o sinthoma autoriza ou não um sujeito a posicionar-se como analista”. Em uma análise que chega ao fim, o status do gozo se modifica: do gozo-excesso para o gozo-satisfação. O gozo-excesso, ligado ao objeto a, mais-de-gozar, rompe o estado de homeostase próprio do prazer, produzindo sofrimento. O gozo-satisfação, presente no último ensino de Lacan, restabelece, de alguma forma, a homeostase, mas, desta vez, incluindo o excesso. Esta nova forma de funcionamento é o que Lacan chamou de sinthoma.
Haveria então, no trajeto para a emergência do desejo do analista, uma ordenação dos significantes mestres que determinaram o destino do sujeito. Esta “realização significante”, como nomeia Miller, não basta para que o sujeito se faça analista. É preciso que a realização significante ecoe sobre a fantasia. Este processo leva a uma modificação no modo de gozar do sujeito ou deve, ao menos, “liberar para o analista por vir um espaço limpo de gozo, a partir do qual balizar a concreção de gozo que, para outro, causa o desejo”. Esta nova economia de gozo é própria, como vimos, do sinthoma.
A dimensão do sinthoma implica a absoluta singularidade e é a partir dela que o analista repudia toda e qualquer identificação. Miller chega a dizer que “um psicanalista não quer semelhantes, quer apenas diferentes”, e “um psicanalista não quer ser acarinhado, quer ser abandonado”. Esta é, finalmente, a solidão derradeira do psicanalista: envolto em sua mais radical singularidade abre caminho, por meio do desejo do analista, para que outro possa trilhar este caminho. Contudo, esta solidão não é assim tão só: lá está o sinthoma para acompanhá-la. Se antes, a fantasia não permitia que o sujeito vivenciasse a verdadeira solidão, agora o sinthoma permite que ela exista.