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PSICANÁLISE, ESTUDOS DE COLONIAIS E O RACISMO NO BRASIL

         Black Noise by Arinze Stanley

Melissa Ádga da Silva  (CLIPP)

Há pouco mais de quatro séculos, pessoas negras provenientes de diversas regiões da África foram transportadas para o Brasil e enviadas ao trabalho escravo nas fazendas. Dessa maneira, permanecem por mais de três séculos.

Capturadas em solo africano e transportadas a outro território já na condição de escravas, nos porões dos então chamados navios negreiros, subjugadas e privadas de qualquer humanidade, as pessoas negras aqui desembarcadas eram distribuídas de maneira tal que em um mesmo ambiente de trabalho conviviam pessoas com línguas, culturas, tradições e religiões diferentes. Essa foi uma de tantas estratégias adotadas pelos escravocratas com o intuito de enfraquecer o grupo, bem como os efeitos da coletividade, além de debilitar sua comunicação e a possibilidade de que fossem identificados. Essa condição de pessoas escravizadas configura uma tripla perda: primeiro do lar, segundo do direito sobre o próprio corpo e, terceiro, do estatuto político. A consequência é a dominação absoluta, a alienação da noção de nascença e a morte social.

Libertas da situação do cativeiro, mas jamais libertas do estigma da condição de escravas, as pessoas negras têm sofrido todos os tipos imagináveis de discriminação, que tem como base a ideia de que são seres inferiores não merecedores de possibilidades sociais iguais.

Analisando a sociedade brasileira hoje, sob a forma que se constitui, e as expressões das desigualdades nela presentes, é possível perceber as heranças deixadas pelo colonialismo, que culminaram na constituição de uma forma particular de racismo, “um racismo dito à brasileira”, que, como Lélia Gonzalez (1988/2020) propôs, é uma forma cruel de discriminação, um racismo disfarçado, um racismo por denegação, uma vez que, como consequência do colonialismo, os brasileiros recalcaram suas origens; é um racismo baseado na marca do fenótipo, e não na origem, que expressa a forma mais aberta de segregação, na qual as pessoas brancas e as de pele mais clara ganham os privilégios distribuídos pela sociedade, em detrimento das de pele mais escura e/ou de pele retinta. A pessoa negra, embora aparentemente e legalmente amparada com muitos direitos como os de qualquer outra cidadã, é tratada como se não fosse, e é responsabilizada pelas expressões da desigualdade que a acometem. É um sujeito marcado por esse traço – a cor de sua pele – que não o separa dos implacáveis sentidos que configuram o racismo e a discriminação.

Essas considerações evidenciam um traço que marca a construção do sujeito no social, dado que a pessoa negra tem o seu processo de tornar-se sujeito afetado, porque ela “na ordem da modernidade, é o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria” (MBEMBE, 2018).

Herdeira do colonialismo, que institui um modo socialmente particular de ver e viver no mundo e se presentifica na memória social por meio dos costumes, religiões de matriz africana e do preconceito racial, a pessoa negra se vê diante de uma sociedade em que há a predominância de um racismo velado, que produz efeitos sobre ela, dificultando o processo em busca de constituir-se como sujeito de direitos (cidadão), mas também afetando a assunção de uma posição de sujeito de desejo ($).

Esse constante processo de desumanização atravessa o processo de constituição do sujeito à medida que impede a possibilidade de identificação com seus semelhantes nas relações sociais, posto que a pessoa negra não era posicionada como pessoa, era objeto, e não sujeito, e foi alijado do corpo social.

No imaginário social, a pessoa negra é constantemente vista como bandida, suja, incapaz e, por mais esforços que tenha feito para conquistar um lugar social melhor, é e será um sujeito marcado pela cor. Assim sendo, surge um sentimento de não-lugar que representa o retorno de um sentido insuportável, que se tenta a todo custo recalcar: a gênese histórico-social de uma condição de exclusão e de objetificação.

Essa lógica da construção do laço social foi evidenciada por Lacan (1945/1998) em seu escrito O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, em que propõe que para toda formação humana há três tempos nos quais se articulam o sujeito e o Outro social. Neles, um homem sabe o que não é um homem; os homens se reconhecem entre si e o homem se afirma ser homem com medo de ser convencido de que não é um homem. Esses tempos não partem de um saber sobre o que é ser um homem para depois identificar-se a ele, mas sim, partem da lógica do que não é um homem. Consequentemente, é assim que se configura o racismo, pois um homem sabe o que não é um homem, então, não é um homem aquele que rejeito como tendo uma posição no laço social e um gozo distintos do meu (LAURENT, 2014).

Assim sendo, o jogo do colonialismo põe à prova a vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, e, para tanto, utiliza-se de diferentes formas de subtração da humanidade das pessoas negras que compunham e compõem a sociedade, pois deixar esse Outro diferente entregue ao seu modo de gozo significaria aceitar as diferenças e, imaginariamente, perder a sua própria humanidade.

Dadas essas circunstâncias, faço aqui duas considerações: de um lado, há para a pessoa negra a dificuldade de construir suas redes de identificações enquanto pertencente ao grupo dos negros; de outro, há a dificuldade em se posicionar como sujeito no interior do corpo social, pelas identificações com seus semelhantes sociais. Tais dificuldades são subproduto do não-lugar, do estatuto de “coisa” dado ao seu corpo e da sistemática negação da sua humanidade.

O estabelecimento do laço social se dá por meio das relações estabelecidas entre as pessoas por meio da fala e do processo civilizatório. A fim de se permitir o estabelecimento dessas relações, exige-se a renúncia da tendência pulsional em tratar o outro como um objeto a ser consumido, já que a inclinação do homem é ser o lobo do homem. Por isso, o discurso (fala) é tratado por Lacan como fundador do laço social, que é tecido e estruturado pela linguagem, visto que “todo laço social implica um enquadramento da pulsão e resulta em perda de gozo” (MARTINHO, 2002).

Freud (1930/2010), em O mal-estar na civilização, afirma que as interdições e as renúncias pulsionais feitas pelo homem em prol da civilização causam sofrimento e determinam os modos de relacionamento estabelecidos entre os sujeitos, em torno da busca de uma satisfação impossível. Lacan (1969-1970/1992), deparando-se com os três impossíveis propostos por Freud – governar, educar e analisar – acrescenta o fazer desejar como um quarto impossível e, no Seminário 17 O avesso da psicanálise, desenvolve a teoria dos discursos que correspondem a modos de uso da linguagem como via de vínculo social. Segundo Lacan, o homem estabelece-se em sociedade para contornar o mal-estar que é impossível de suportar e é na estrutura significante que o discurso se funda.

O discurso do mestre é definido por um saber que configura uma certeza, uma ordem à qual o sujeito se aliena. Este saber está sempre contido no Outro e nunca no sujeito que está excluído da cadeia significante (LACAN, 1969-1970/1992), dado que ele é imperativo e prima pelo poder e pela ordem. Esse discurso está orientado pela univocidade e pela dicotomia (ou isto ou aquilo). Portanto, esse é o discurso presente nas normas de comportamento, ou seja, é o discurso que “impregna a cultura, levando as pessoas a buscarem as formas estandardizadas, os parâmetros ou normatizações – tentativa essa de enquadrar a singularidade ao modelo social, em uma linguagem direcionada a todos” (MRECH; RAHME, 2011).

Essa perspectiva, aberta pelo ensino de Lacan com a teoria dos discursos, contribui para pensar a lógica com que se consolida o racismo presente nos mais diversos setores da sociedade, desenhado a partir de um ideal coletivo que constrói a ideia de que a cor branca é sinônimo de pureza e altivez e a cor negra representa o ruim e o indesejável, como se esses traços de cor tivessem que estar polarizados. Pois, como Freud nos ensinou, a civilização permite aos seres falantes o uso de insultos e palavras no lugar de lanças ou de pedras e ofensas no lugar da eliminação. Complexo diferencial humano, que substitui o ato por ideias, pensamentos e elaborações.

O racismo, enquanto produção do Discurso do Mestre, pode alienar o sujeito, pois a cor negra enquanto significante carrega um diferencial de intensidade que insiste em ficar atrelado aos referenciais de inferioridade, violência, maldade e selvageria, deixando de cumprir seu papel de movimentação, de ir de uma coisa para outra, já que o sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante.

O discurso racista sustentando pela cultura faz com que a cor seja um dos determinantes da vida do sujeito, fazendo com que um sujeito, reconhecendo-se enquanto pessoa negra, sofra as consequências da marca desse significante (cor da pele) que se apresenta na realidade com intensidade de morte, porque não há como deixar de ser negro e não representar tudo aquilo que é indesejável e inaceitável, tanto quanto a certeza de que a morte é o destino de todos os vivos.

Abordar o racismo, enquanto estrutura da sociedade e estruturante do sujeito, significa dizer que proponho discuti-lo enquanto um fenômeno que se manifesta também como consequência da relação do sujeito com seu campo pulsional, o que nos leva a falar a respeito do amor e do ódio que, conjuntamente à ignorância, correspondem às três paixões do ser (LACAN, 1953/2009; 1955/2010), ou seja, falar do ódio quer dizer também falar do amor, já que ambos ocorrem de maneira simultânea na vida do sujeito, permeando suas relações.

Isso posto, enquanto psicanalistas inseridos na cultura, em particular na cultura brasileira, não podemos nos deixar enganar – mesmo que os discursos racistas proferidos afirmem que as pessoas negras são seres ruins, desumanos, odiosos: o inaceitável não se articula com ruim, e o aceitável com o bom. Estamos lidando com um campo pulsional em que não há barreiras concretas que separam o joio do trigo. Trata-se, sim, de uma topologia, como nos aponta Lacan em seu último ensino.

Partindo-se desse referencial, o racismo passa a ser compreendido como uma modalidade de domínio diante da angústia que se sente em si mesmo, frente ao que lhe é estranhamente familiar da presença do outro, do estrangeiro, da outra raça, do outro sexo, do Outro da norma (SOUZA, O., 1994).

O racismo seria, então, uma forma de extirpar do Outro o seu modo de gozo e lhe impor o nosso (SOUZA, N., 1998; SOUZA, O., 1994). Tal afirmação corrobora a fala de Lacan em Televisão (1974/2003): “Deixar esse Outro entregue ao seu modo de gozo, eis o que só será possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido”. Assim, para além de um ódio, de uma agressividade dirigida ao semelhante, o racismo envolve aquilo que toca também ao que resiste à simbolização e à imaginarização, pois o que se odeia é a maneira particular de gozo que se atribui ao Outro. No entanto, esse Outro é o outro em mim. Enfim, o racismo e as expressões pelas quais se manifesta, representam o ódio ao próprio gozo.

No processo de constituição do sujeito, é preciso que ele ultrapasse a identificação primordial com sua imagem refletida no espelho, o eu ideal, para que alcance o ideal de eu e possa advir como um sujeito desejante. No entanto, “é preciso que esse modelo ideal exista para que recupere o narcisismo original perdido, mesmo que seja mediado pelo ideal de eu” (SOUZA N., 1990).

O eu ideal é a instância marcada pelo registro do imaginário e se caracteriza pelas identificações maciças e pelas representações fantasmáticas. Já o ideal de eu é o domínio do simbólico, da lei e da ordem, é o lugar do discurso (SOUZA N., 1990).

Se o ideal do eu é o lugar do discurso, podemos afirmar que ele está completamente articulado com a sociedade e a cultura. Diante disso, “como o discurso da sociedade e da cultura brasileira afirmam que o normativo é o branco, a pessoa negra tem acesso ao modelo de ideal de eu que exprime o fetiche da brancura” (COSTA, 1990 apud SOUZA, 1990), pois passa pelo processo identificatório forjado no desejo do que seria ser branco. Assim, está posta a dualidade que tange à estrutura psíquica da pessoa negra, o que Isildinha Batista (1998) expôs como “uma dupla lacuna que se instaura no processo de tornar-se sujeito, em que o real de sua condição de negro não é reconhecida, é negada e se nega”.

Marie-Hélène Brousse (2018), em seu texto intitulado As identidades, uma política, a identificação, um processo, e a identidade um sintoma, faz uma contextualização cirúrgica a respeito da diferença entre a identificação, enquanto processo psíquico, e a identidade como fixação a uma imagem, revestida de valor e, portanto, a identidade como um sintoma. Ela nos aponta que desde Freud, a divisão subjetiva correlata à possibilidade da existência do inconsciente e sua verificação a partir das manifestações que o produzem, opõe-se à ideia proposta por concepções pautadas na fenomenologia de que há uma identidade enquanto unidade.

Já no início, desde o estádio do espelho, a dimensão do imaginário atribui à imagem virtudes simbólicas, na medida em que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Com isso, tem-se que a identidade está do lado do Outro, a partir das imagens fixadas, e não do lado do sujeito, efeito de linguagem, isto é, a identidade do sujeito não passa de “identidade de papel”, definida a partir dos documentos emitidos pelo Outro (BROUSSE, 2018 apud MILLER, 2007).

O Outro, além de oferecer os significantes que deslizam pela identidade, é essencial para o processo de identificação que é o laço mais primitivo que une uma pessoa a outra, até mesmo em um grupo.

Esforçando-se para transpor esses conceitos à particularidade da pessoa negra, pode-se afirmar que, à medida que a identidade do sujeito depende da imagem especular da unificação do corpo próprio, investida libidinalmente, a pessoa negra, ao vivenciar o racismo, mesmo que de forma implícita, terá seu psiquismo marcado pela perseguição do corpo-próprio (COSTA, 1990 apud SOUZA, 1990), uma vez que nesses três níveis o que se subscreve é a identificação ao traço de gozo, a um modo de gozo do Outro (LAURENT, 2013).

Concluo, por ora, que a psicanálise tem um papel fundamental na abordagem dos efeitos do racismo na atualidade e na realidade brasileira, na medida em que toda forma de segregação que se imponha à vida social do indivíduo é indissociável de uma profundidade inconsciente da racialização, uma vez que o sujeito é divido pelo Outro e pela linguagem, e que há a possibilidade de utilizar as contribuições psicanalíticas para pensar, discutir e fazer uma leitura dos efeitos do racismo para a subjetividade de cada falasser e também sobre os laços sociais organizados a partir dessa lógica segregativa.

 

Referências

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