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Durval Mazzei
Imagem: Instagram @artsheep

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Um modo simples e preciso de conceituar “toxicomania”, “adicção a drogas”, “dependência química” é correlacionar tais nomes a um ser que transforma a presença dos efeitos de qualquer substância psicoativa à condição de necessária para sua atividade. Seja o que for – do laço amoroso aos profissionais; do folguedo à seriedade – a companhia do efeito da droga é insubstituível. Esse modo de manejar o laço com o outro pode tomar múltipla aparência: do ser que exerce os papéis socioculturais lhe cabem e o encontro com a droga é importante como prazer e/ou gozo até o ser no qual seus papéis desaparecem e o momento do encontro com a droga é o único que conta.

Qualquer que seja a alternativa, é considerável que este ser faz uma substituição do laço com o objeto causa de desejo (objeto a), no âmbito da fantasia ($◊a), para uma outra posição onde o objeto torna-se preponderante (a→$). Não é sem significação que esta última fórmula é dedutível do discurso capitalista no qual o sujeito inefável torna-se um consumidor concreto em busca da totalidade.

Tal estado de coisas não é de abordagem tranquila pelo discurso analítico. Freud (1930/2012) refere-se a drogas no “Mal-estar na Cultura” como  “o método mais grosseiro, mas também o mais eficaz de [levar adiante o programa do princípio do prazer] é o químico, a intoxicação… o fato é que existem substâncias estranhas ao corpo cuja presença no sangue e nos tecidos nos proporciona sensações imediatas de prazer, além de modificar de tal modo as condições de nossa vida perceptiva a ponto de nos tornarmos incapazes de perceber sensações de desprazer (p 66)”. Se, desde Freud, viver em cultura, exibir as marcas civilizatórias, inclui uma supressão de gozo e/ou prazer, lançar mão deste “método” é lançar-se fora da cultura. Lacan (1960/1998) em “Subversão do sujeito” diz algo similar, mas interessado no ato analítico propriamente que inclui o saber valer como verdade. Escreve “[há] todo um pensamento tradicional, de habilitar a expressão não infundada ‘estado do conhecimento’. Quer se trate dos estados de entusiasmo de Platão, dos graus do samadhi no budismo, ou do Erlebnis, experiência vivida do alucinógeno, convém saber o que uma teoria qualquer autentica disso. Autentica disso no registro do que o conhecimento comporta de conaturalidade (p 809)”. Depois de comentar que nem o enunciador do conhecimento absoluto, Hegel, levaria isso em conta, Lacan completa “pois supomos estar bastante informados da práxis freudiana para apreender que tais estados não desempenham nela nenhum papel”, pois o saber resultante não vale como verdade.

Esses dois comentários demonstram a razão da abordagem deste tema não ser tranquila ao discurso analítico: o recurso às drogas é um modo de acercar-se na totalidade ao avesso do discurso analítico, pois a fantasia, viabilizada nessa modalidade de laço social é, justamente, um recurso para lidar com a falta. Falta que a droga procura tamponar, obturar. Frequentemente com sucesso, pois soma-se a outro meio de exorcizar o mal-estar: a solidão voluntária, o distanciamento em relação aos outros.

Esta última referência, também freudiana, relaciona-se ao momento delicado que a civilização atravessa: a pandemia. Este pedacinho de real nomeado Sars-Cov-2 obriga o distanciamento em relação aos outros, involuntário, mas fundamental para que sua disseminação não se generalize mais ainda. Cria, na existência, uma situação na qual a civilização e todo o descontentamento que ela obriga, constrói a possibilidade do prazer e/ou gozo abrir-se à satisfação solitária e cínica, similar à obtida pelo efeito das drogas, e esta se generalize mais ainda que o temível vírus!


Referências:
Freud, S (1930/2012) O mal-estar na cultura. L&PM Pocket, Porto Alegre.
Lacan, J (1960/1998) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. Em “Escritos”. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.