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A construção do caso na equipe de saúde mental

Por Daniela de Camargo Barros Affonso

Como se constrói um caso clínico em uma instituição de saúde mental? A questão envolve não somente a forma como o caso vai ser comunicado, mas em que contexto ele é atendido, ou seja, o funcionamento institucional propriamente dito — o que implica considerar questões ideológicas, políticas, econômicas e teóricas de toda ordem — e ainda a quem será comunicado, portanto os diferentes membros da equipe, de diferentes formações profissionais.

As singularidades e a complexidade da construção de um caso clínico em uma instituição de saúde mental são abordadas por Carlo Viganò em dois textos publicados nas revistas Curinga n.º 13 (“A Construção do Caso Clínico em Saúde Mental”) e Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental n.º 9 (“A Construção do Caso”), com o intuito de demonstrar como a construção do caso na instituição de saúde mental requer reflexão abrangente acerca de aspectos múltiplos, diferentemente do que ocorre na construção do caso atendido no consultório particular e comunicado a uma platéia constituída apenas de psicanalistas.

Na dependência da orientação institucional, a construção do caso se dá de maneiras diversas. O autor faz uma diferenciação entre uma orientação onde o paciente é visto como um caso social, e outra, em que é visto como um caso clínico.

No caso social, as funções de cada membro da equipe estruturam-se conforme uma hierarquia de saberes e funções: a um cabe interpretar, a outro, intervir pedagogicamente e a outro fazer a assistência social, de tal forma que que há um preenchimento a impedir qualquer questionamento do paciente, como “o que faço aqui?”, “o que torna a minha vida insuportável?”, “o que posso fazer para encontrar uma solução?” (Curinga, p. 54). Nessa orientação, o analista ocupa o lugar do Outro do saber.

No caso clínico, em contrapartida, há um vazio de saber, no qual há espaço para que o paciente possa vir a formular tais perguntas, e portanto passar à posição de analisante. “Em síntese, trata-se de não colocar a pergunta: o que podemos fazer por ele?, mas uma outra pergunta: o que ele vai fazer para sair daqui?” (Curinga, p. 54). É eventualmente inevitável, em momentos em que o paciente é inserido em uma instituição psiquiátrica por um momento de crise, incapacitante para sua permanência no âmbito social, que condições mais ou menos burocráticas se imponham; mas isto pode se transformar num caso clínico na medida em que a equipe de trabalho permita essa passagem.

Viganò encontra, no conceito freudiano de construção, a ferramenta que permite que se faça, na instituição de saúde mental, a construção do caso clínico, evitando a paralisação imposta pela orientação que leva a ver o paciente apenas como um caso social.

O conceito de construção originou-se da preocupação de Freud ao notar como seus discípulos preenchiam todo o tratamento interpretando, excessiva e precipitadamente. Essa ininterrupta produção de sentido por meio da interpretação os impedia de exercerem a escuta propriamente analítica, qual seja, deixar-se surpreender pelo real da palavra. Para se construir o caso clínico deve-se, ainda de acordo com as colocações do autor, pôr a escuta além do que diz o paciente, mas considerar a forma como o diz, comparar com relatos familiares, levar em conta a história de vida.

A diferença entre interpretação e construção é fundamental. Na primeira, trata-se de decifrar os significantes recalcados, enquanto na segunda, que é preliminar ao ato analítico, trata-se exatamente de preparar o campo para o trabalho analítico, ou seja, construir a demanda. “A construção do caso não é um exercício acadêmico, é uma obra de alto artesanato, o êxito da reflexão que o artesão realiza a posteriori sobre o seu operar, quando procura dar razão daquilo que está fazendo a si mesmo, mas também ao seus comitentes ou aos seus colegas rivais. O que resulta disso é um ‘saber fazer’, em que o saber técnico-científico entra apenas como uma pré-condição.” (Almanaque, p. 48).

Aí se insere o trabalho da equipe — justamente na coleta de todos os dados e na comunicação destes, criando uma interlocução para a construção do caso clínico, não como numa supervisão, em que se fala a uma escuta analítica, mas nesse caso com um público onde também há não-analistas. “Nesses termos, a construção do caso não exige um sujeito suposto saber, como no caso da supervisão.” (Curinga, p. 55).

Esse trabalho, em uma equipe multiprofissional, impossibilita que cada um procure garantir-se em referências teóricas imaginariamente compartilhadas, ou ainda no fato de pertencer a uma mesma escola. Isso proporciona que a ênfase seja colocada no caso e não no narcisismo de cada um dos profissionais. Para tal, é necessário que cada membro da equipe tenha desenvolvido autonomia e responsabilidade diante da clínica.

Viganò considera que, procedendo-se dessa forma, substitui-se o saber do mestre sobre a saúde mental pelo debate democrático, o qual produziria uma nova autoridade, que ele chama de “autoridade clínica”, a qual permite introduzir o sujeito num trabalho analítico, ou seja, construir uma demanda. Não se trata de democracia por referendar a decisão da maioria, mas porque as decisões da equipe são provenientes do saber que é extraído do paciente: “(…) esse trabalho de construção opera um corte transversal em todas as figuras profissionais. Ele interroga o lugar que elas ocupam em relação ao paciente, alarga as fronteiras profissionais, e os lugares de saber fundam-se com o trabalho, onde o trabalho constrói um saber possível em torno daquele sujeito, naquele momento. Esse corte vai ativar o desejo, o de ocupar aquele lugar, para aquele sujeito, que não é garantido pelos papéis, mas que pode ser ocupado somente com o próprio risco, com o desejo de se arriscar. Trata-se de um novo percurso profissional que, a partir do coletivo, tem a função de motor, para lançar novamente o desejo de cada membro da equipe, evitando, inclusive, a segregação — que, desta vez, é das profissões — em relação àquilo que juridicamente estamos autorizados a fazer.” (Curinga, p. 59).

Texto elaborado para a Conversação Clínica da CLIPP
19 de junho de 2004