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A VERDADE, À MEIA LUZ

                      Paulo Abreu

João Paulo Desconci (CLIPP)

Herbert Geraldo de Souza e Cristiane de Freitas Cunha apresentam em seu texto A interlocução da psicanálise com as políticas públicas de enfrentamento da violência doméstica contra a mulher (2018) que, num plano geral, tal fenômeno que, em outras épocas, era colocado à margem da sociedade e mantido como algo “natural” nas famílias – tem ganhado visibilidade à medida que os movimentos feministas e sociais passaram a reivindicar a inclusão da violência contra a mulher como violação aos Direitos Humanos e como questão de saúde coletiva. A Lei “Maria da Penha” (Lei 11.340) adequou mudanças atinentes ao atendimento de mulheres nos serviços públicos, bem como instituiu várias formas de violência doméstica: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial.

Segundo a reportagem de Nacho Carretero, intitulada “Como esse cara me convenceu de que eu era tonta?” (2017)1, cada vez mais são atendidos casos de abuso psicológico contra a mulher sob a rubrica do que se chama de Gaslighting. O nome dessa prática tem origem no filme de 1944 Gaslight2 (À meia luz, em português), no qual um marido, para esconder seu segredo, dissuade sua esposa até convencê-la de que ela fantasia e, consequentemente, sugere que questione sua própria conduta. Nos relatos apresentados, tal prática é descrita como constante, sutil e indireta, a tal ponto que, por prescindir da violência explícita, na maioria dos casos nem sequer é reconhecida pelas autoridades como maus-tratos. Apoiada na intermitência do afeto, muitas vezes favorece na vítima o isolamento, potencializando a relação de co-dependência e de submissão à percepção do abusador, bem como gerando sentimento de culpa, dúvida ou vergonha.

Em seu artigo O bárbaro, transtornos de linguagem e segregação (2018)3, para Miquel Bassols afirma que “não há, de fato, segregação mais radical do que a que se funda na negação da fala do sujeito. Quando se nega a alguém o direito da fala, lhe é negado o mais fundamental, o reconhecimento simbólico de seu ser em relação aos outros” (pág.1). Assim é que a prática psicanalítica se funda, exatamente, em deixar a maior liberdade ao sujeito para dar rédea solta às suas palavras, até chegar a mais íntima. No entanto, para o autor, faz-se necessário distinguir uma segregação estrutural, inerente ao fato de linguagem, da segregação social no vínculo do sujeito com os outros.

Separar não é o mesmo que segregar, e essas duas operações se opõem: é por não poder se separar, no sentido da operação simbólica que o sujeito se encontra segregado da pior maneira. Por sua vez, é por essa separação que pode começar a se produzir a aceitação dessa outra segregação estrutural implicada pela linguagem e que pode começar a se produzir a subjetivação do gozo bárbaro que implica ser um ser de linguagem.

Segundo Luis Tudanca, em seu artigo A segregação nossa de cada dia (2012)4, a definição de política em relação à psicanálise, para Lacan, é instituída pela ordem do sintoma e tem como única ferramenta a interpretação (pág.2). Qual seria, portanto, a especificidade da interpretação analítica? Diferentemente dos filósofos, sociólogos, cientistas políticos, literatos, cujas interpretações apontam para o sentido, a interpretação psicanalítica é a leitura do sintoma: “Ler um sintoma é interpretá-lo, interpretá-lo é, se não ir diretamente ao fora de sentido, é, pelo menos, tratar de podar os outros sentidos que estão em jogo em relação a esse sintoma. Essa me parece que é a intervenção mínima” (TUDANCA, 2012, pág.3).

A partir do curso de Jacques-Alain Miller, A Orientação Lacaniana – O lugar e o laço (2000-2001), na lição intitulada Psicanálise pura, psicanálise aplicada & psicoterapia (MILLER, 2017)5, os termos visam ecoar a diferença entre psicanálise pura e psicanálise aplicada (à terapia) em relação à psicoterapia.

A Psicanálise pura, portanto, é a noção de uma psicanálise como uma prática que toma seu ponto de partida na transferência, que Lacan apresentou como um algoritmo do saber, e que, sendo levada às suas últimas consequências, isto é, encontra um princípio de parada – condição para especificar a relação com o real. Sendo assim, leva ao passe, uma vez que nele tenta-se verificar o que se passou com a interpretação em uma análise, especificamente, se conseguiu fazer algo ou não com o sintoma do sujeito.

Por outro lado, a noção de psicanálise aplicada (à terapêutica, ou mesmo outras áreas como na educação por exemplo) vem como um lembrete para que não deixe de ser psicanálise, a ponto de Miller afirmar que a psicoterapia per se não existe.

Há uma dificuldade de se exprimir a diferença entre psicanálise e psicoterapia, pois existe um aspecto platônico que traz ao psicanalista a extensão crescente da psicoterapia sob a forma vizinha da análise. Segundo o autor, a psicoterapia estaria inscrita no discurso do mestre, pois ali o sujeito reclama uma identificação que se sustente e sofre quando essa vacila, isto é, a urgência desta reclamação visa restituir-lhe esta identificação. Desde Freud, a divisão subjetiva, correlativa à introdução da hipótese do inconsciente e sua verificação pelas manifestações que o produzem, vem opor-se a essa identidade enquanto unidade unificadora.

Para Éric Laurent, segundo seu texto O traumatismo do final da política das identidades (2018)6, o discurso do mestre – que parte das identificações e da paixão narcísica de acreditar-se uno, vai contra a dimensão da causa, como fundamento. Ao avesso, o discurso da psicanálise, segundo Lacan7, vai contra as identificações, devolvendo ao sujeito sua vacuidade primordial, tornando possível uma travessia da fantasia apoiada no des-ser do sujeito.

Jésus Santiago, no artigo Da ironia ao cinismo: semblante e real na política lacaniana (2018), aponta que no campo da política, procede-se por identificação, busca-se manipular os significantes-mestres com o objetivo de capturar o sujeito (pág.2). Por isso mesmo a questão do discurso do mestre se apresenta como fator com o qual a política da psicanálise se confronta.

A partir disso, o Gaslighting se apresenta como paradigma da relação entre os sexos na modernidade, representado no casamento monogâmico tradicional como ideal, autenticado pela ciência e pela religião, uma vez que apoia o real do sexo na natureza. A partir disso, dar sentido total à relação sexual, implica necessariamente numa interpretação que segrega e sutura o sujeito, justamente ao fazer existir A Mulher, em sua complementaridade ao homem e não à suplementariedade de seu gozo.

Um sujeito, então excluído do laço social, se opõe ao que pertence ao grupo. Com isso, o machismo pode ser tomado como exemplo fundamental da política da identificação com o ideal do líder das massas e o discurso do mestre, um caso muito especial nesse sentido. Não por acaso a prática do Gaslighting se orienta em colocar a mulher na posição de louca, situando esta interpretação que segrega como a parceria-sintomática mais medíocre entre os estereótipos de gênero, masculino e feminino, resumindo-se a uma relação de poder. Eu poderia chamar essa construção de ‘um possível feminismo lacaniano’.

1 El País, Madri, 23 de novembro de 2017. (disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/15/internacional/1505472042_655999.html).

3 IDEM. Ibidem.

4 Publicado no Almanaque On-line do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, n.10, janeiro-julho de 2012.

5 Publicado na Opção Lacaniana Online, ano 8, n. 22, março 2017.

6 Publicado na revista Opção Lacaniana Online, ano 9, n.25 e 26, março/julho de 2018. Inclusive, este número aborda especialmente o tema Identidade e Segregação.

7 LACAN, Jacques. Seminário XVII – O avesso da psicanálise (1969-70).