Débora Garcia (CLIPP)
Um efeito é aquilo que é produzido por uma causa – é uma consequência. Em uma das últimas reuniões do cartel do qual faço parte, fomos convidados a escrever para a manhã de Cartéis, E respondo: “eu não me lembro mais qual é a minha questão”. Ao dar o primeiro passo, já não é possível estar no ponto de partida. “A transferência e suas conexões com o amor e com o inconsciente” foi o título declarado à EBP e “O Amor de transferência em tempos de amor líquido” foi o fruto por mim colhido a partir da experiência com o cartel.
No prefácio de Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, Zygmmunt Bauman faz referência ao livro O homem sem qualidades: homens sem vínculos, sem ligações indissolúveis e definitivas, que se amarram uns aos outros. Desligados, precisam conectar-se sem a garantia de permanência; só precisam estar frouxamente atados, laços que podem ser outra vez desfeitos. Ainda em o Amor Líquido, Bauman escreve:
“não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória – inexistente, embora ardentemente desejada – de evitar suas garras e ficar fora de seu caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão – mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido. O amor, o nascimento e a morte, não há como aprender a fazer certo na próxima oportunidade”. [1]
A psicanálise é inaugurada através da hipótese do inconsciente: há saber no inconsciente; é na experiência analítica que a abertura ao inconsciente encontra lugar a partir de um endereçamento transferencial que em presença do analista como função, possibilita a localização de um sujeito, no dizer do analisante. Uma experiência analítica comporta algo de radical, pois é inaugurada somente a partir do consentimento ao entrelaçamento transferencial que traz consigo um amor inédito – o amor de transferência.
Amor é dar o que não se tem, diz Lacan no Seminário 8:
“Se lhes trago, nesse sentido, a fórmula de que o amor é dar o que não se tem, nada existe aí de forçado, de lhes mostrar uma das minhas invencionices. É evidente que se trata disso mesmo, já que a pobre Aporia, por definição e por estrutura, não tem nada a dar, se não sua falta, aporia, constitutiva” [2].
Para Lacan a dimensão do amor de transferência situa-se para além de uma demanda de saber, apesar de não se poder perder de vista a relação entre o amor e o sujeito suposto saber – ama-se a quem supõe o saber.
Sérgio Laia, no texto A transferência, suas mutações e o real [3], aponta que, nos tempos atuais, não há uma radical dessuposição de saber: os sujeitos ainda procuram um analista. No entanto a mesma está esvaziada daquela paixão amorosa relatada nos casos clínicos freudianos, como transferência do analisante ao analista. Ele recupera um termo utilizado por Lacan: desabonamento do inconsciente.
Feitos para serem desfeitos e feitos novamente, os vínculos da época atual são marcados pela liquidez do amor; diante disso o analista aposta em não tirar o corpo fora, mas marcar presença. A radicalidade na aposta de um não saber prévio marca a falta que permite ao sujeito falar, amando ou não o inconsciente.
Qual o futuro da Psicanálise, qual o lugar caberá ao analista de orientação lacaniana? Que consequências o amor líquido da época traz ao amor de transferência?
*Cartel: Transferência. (Apresentado na Jornada de Cartéis – EBPSP, 2018).