Marcelo Barboza Rocha

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O texto foi elaborado a partir da discussão do caso clínico apresentado por Esthela Solano-Suárez, caso de “uma criança que dá conta do deciframento do sintoma feito pela criança” (SOLANO-SUÁREZ, 2004). Qual deciframento? Do sintoma produzido pela mãe e pelo pai na tentativa de fazer existir a relação sexual (LACAN, (1998 [1969], p.5-6).

Júlia, 8 anos, filha única. Os pais nunca viveram juntos, o pai ficava na casa da mãe dele e a mãe de Júlia sozinha com ela. Essa menina era objeto de disputa e discórdia dos pais, muito amada por ambos, que a disputavam como a um urso de pelúcia. A mãe da criança conhece outro homem e resolve viver maritalmente com ele, decidem ter um filho e no momento em que a mãe dela engravida, o pai morre.

O resultado para Júlia é um desamparo, pois as significações que enlaçavam a trama da sua vida foram desfeitas, enlaçamento sustentado falicamente. Esse confronto com algo do real, sem sentido – essa efração acaba por desencadear uma fobia.

A fobia dela se liga a um medo de tubarão, um objeto que serve como anteparo, como proteção sobre o fundo de angústia fundamental (LACAN, 1995 [1956-57], p.22). Ela diz que seu medo não passa pelos tubarões dos livros, ou mesmo do filme “Jaws”, “Tubarão” em português e em francês “Os dentes do mar” ou “Les dents de la mer”, homófono aos “dentes da mãe”, que evoca a figura da mãe devoradora (LACAN, 1995 [1956-57], p.189)

A fobia parece surgir justamente por não haver um pai para operar a castração sequencial que se dá nos tempos lógicos do Édipo – depois do tempo do engodo e da queda dessa ficção [5], nenhum pai se apresenta para operar simbolicamente a castração realizada pela mãe (LACAN, 1999 [1957-58], p.185).

A mãe se ocupará agora de seu outro bebê, mas quem se ocupará de Júlia? Frente à castração simbólica, ela imagina outro objeto para servir de anteparo à angústia oriunda desta castração. Frustrada na relação com a mãe e privada de seu pai, como significar o seu valor no desejo do Outro? Se o pai real não pode operar o fim do Édipo para estabelecer o ideal de eu, ela deverá encontrar outros meios para fazer essa transposição – não sem obstáculos, não sem objetos que interfiram nesse processo.

Parece pertinente o fato de que Júlia tenha um medo particular de que o tubarão apareça enquanto ela usa o vaso sanitário – nesse momento em que o objeto vira dejeto, quando se faz necessário abrir mão de algo que, em algum momento, é tido como parte de si. Essa dificuldade de compreensão do que é dentro e do que é fora, do que é imaginário e do que é real ou simbólico, do que faz parte do eu e do Outro, algo apresentado em seu extremo a partir do caso Robert de Rosine Lefort (LACAN, 2009 [1953-54], p.122) , traz como solução temporária a localização da angústia no objeto fóbico.

Depois de algum tempo de análise, presa ao significante tubarão em sua repetição, ela percebe que pode ouvir outra coisa para além da palavra tubarão – escreve no papel aquilo que é típico do sintoma em escrever em outro lugar (LACAN, 1998 [1953], p.260) alguma verdade (VIEIRA, 2025) na língua do sujeito: nesse caso, a língua francesa em uso pela Júlia, onde tubarão se escreve e se lê “requin”, mas Júlia escreve “re qu’un” – “de novo um só”, Isso quer dizer que só há um; ela decompõe o significante anterior para achar um sentido interno, “que un” significa “apenas um”, mas com o prefixo “re” esse “apenas um” insiste em repetir infinitamente, pois ele é o único:

se eu digo re senão 0, o zero quer dizer que não há nada, o zero é como um buraco e é por esse buraco que eu deixo passar o tubarão. Se o tubarão está no zero, está fechado lá dentro e não pode mais sair. Não, diz ela, melhor ainda, ele desaparece. Porque no zero não há nada, há zero de tubarão. Se ele fica no zero, vai passar o tempo a contar e a fazer a ronda com os outros, o 2, o 3, o 4. Se ele brinca com os outros não se aborrece porque não está sozinho. E como ficará ocupado, não vai mais me incomodar (SOLANO-SUÁREZ, 2004).

Júlia deduz assim o princípio da repetição significante e quando ela introduz o zero pode concluir sua operação. O “Um-sozinho” que se repete, não produz o deslizamento significante que gera sentido; é puro gozo do sintoma, angústia, não há S1 que faça furo e que permita a organização dos demais significantes em cadeia, S2, S3, Sn… (DIAS, 2025).

O conjunto vazio é o zero que está no princípio da série: 0, 1, 2, 3, infinito, enquanto o um-sozinho é o conjunto que não faz série, que só repete a si mesmo. Parece haver algo aí que fala da própria solidão de Júlia neste trajeto, solitária em seu lugar de Um – sem pai nem mãe, não consegue brincar com os outros e não se aborrecer.

É possível fazer uma aproximação entre o caso de Júlia e alguns exemplos musicais. Quando escutamos uma música como a tema do filme “Tubarão” (exemplo propício ao caso específico), a 5a sinfonia de Beethoven, ou ainda a música tema do filme Psicose de Bernard Herrmann. Percebe-se que um dos fatores marcantes que traz ao ouvinte uma sensação que pode ser tida como angustiante, se encontra justamente na repetição insistente de determinados motes, melódicos ou rítmicos, chamados de ostinatos – essas repetições podem estar tanto na melodia principal, que poderíamos aproximar ao objeto fóbico, ou na base que subjaz ao tema, e que podem ser consideradas parte do fundo de angústia fundamental que percorre a obra. Somente quando cessam tais repetições é que se abrem possibilidades para a elaboração de novas formas musicais que podem retirar o ouvinte deste momento de tensão.

Voltando ao caso, é com essa operação lógica dos conjuntos e o fim da repetição insistente, que o tubarão não a incomoda mais, pois perde seu valor de uso dentro da lógica sintomática em que operava – ela encontra uma resposta que se inscreve em termos de função simbólica como função da castração, subtração de gozo do um a fim de que o gozo pudesse passar para a série aberta até o infinito e o zero vira o rolo de pedra (LACAN, 1992 [1969-70], p.105) que fica entre a bocarra do tubarão devorador e a criança.

 

*Texto elaborado durante o módulo do Pequeno Hans do Curso de Psicanálise da CLIPP no primeiro semestre de 2025, em uma proposta de discussão de caso clínico junto ao Cartel de Ensino.

 

Referências Bibliográficas:

DIAS, E. C. (2025) Sobre o Seminário 19 de Jacques Lacan: … ou pior. Recuperado em 8 de outubro de 2025: <https://clipp.org.br/sobre-o-seminario-19-de-jacques-lacan-ou-pior>.

LACAN, J. (1998 [1953]) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 260-324.

LACAN, J. (2009 [1953-54]) O Seminário, livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1995 [1956-57]) O Seminário, livro 4: A Relação de Objeto. 1a ed. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1999 [1957-58]) O Seminário, livro 5: As Formações do Inconsciente. 1a ed. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1992 [1969-70]) O Seminário, livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1998 [1969]) Duas notas sobre a criança. In: Opção lacaniana, n. 21, São Paulo, abr/1998, p.5-6.

SOLANO-SUÁREZ, E. (2004) A criança em questão no final do século. In: MURTA, A., MURTA, C., MARTINS, T. (Org.). Incidências da psicanálise na cidade. Vitória: EDUFES, p. 11-48.

VIEIRA, M. A. Nota sobre a criança, de Jacques Lacan. Uma leitura. Recuperado em 8 de outubro de 2025: https://litura.com.br/curso_repositorio/uma_leitura_de_nota_sobre_a_crianca_de_j_1.pdf.