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Dignidade e indignação: algumas articulações possíveis

por Mariana Galletti Ferretti (SP-BR)

No Seminário 8, Lacan afirma que a posição do desejo como tal só pode ser concebida a partir da noção do deslizamento indefinido da cadeia significante (p. 214). Esse deslizamento é característico da metonímia, fenômeno que é efeito da submissão do sujeito ao significante e suporte da cadeia significante; dito de outra forma, a metonímia “não é nada além da possibilidade do deslizamento indefinido dos significantes sob a continuidade da cadeia significante” (p. 214). O que estanca tal movimento indefinido e infinito é o objeto privilegiado, que assume o valor essencial da fantasia fundamental (p. 214). Nela, o sujeito se reconhece ali detido. Via o objeto, o sujeito se identifica à fantasia fundamental e nela se reconhece. “E é na medida em que o sujeito se identifica à fantasia fundamental que o desejo como tal assume consistência (…) [e] se coloca no sujeito como desejo do Outro, grande A” (p. 214) . Ou seja, é pela via do objeto da fantasia fundamental que no sujeito se inscreve algo do campo do Outro. É por isso que Lacan diz que “o que está em questão no desejo é um objeto, não um sujeito” (p. 215). Ainda sobre o objeto, Lacan nos diz que ele é supervalorizado, pois “ele tem a função de salvar a nossa dignidade de sujeito, isto é, fazer de nós algo distinto de um sujeito submisso ao deslizamento infinito do significante” (p. 216). Trata-se de uma bela passagem na qual Lacan faz uma importante referência ao termo dignidade, ligando-o ao sujeito.

A dignidade do sujeito se articula ao desejo na medida em que o objeto faz do sujeito “algo de único, de inapreciável, de insubstituível” (p. 216) e, portanto, não submisso à indefinição do deslizamento significante. Isto nos sugere uma cadeia significante ancorada no traço unário: “o traço unário, no que o sujeito a ele se agarra, está no campo do desejo, o qual só poderia de qualquer modo constituir-se no reino do significante, no nível em que há relação do sujeito ao Outro” (LACAN, 1964, p. 248).  Ou seja, o traço unário origina e ancora logicamente o desejo, onde o sujeito é único.

A propósito do argumento do IX Enapol, uma das referências do eixo indignação está também no Seminário 8, numa passagem em que Lacan se refere a Hamlet. Nessa estranha tragédia (p. 349) há uma contradição fundamental: o fantasma do Rei Hamlet, mesmo tendo revelado que foi morto em plena flor de seus pecados, não é, em nenhum momento, questionado por seu filho. O príncipe da Dinamarca tem o pai como o ideal de homem.

Se, de um lado temos a dignidade inabalável desse pai, o “ideal do cavaleiro do amor cortês” (p.350), por outro há a indignação frente ao gozo materno (p. 350), que impeliu Gertrudes ao leito de seu cunhado, sem nem mesmo esperar que os pratos do funeral de seu marido tivessem esfriado.

Trata-se de um único parágrafo no qual há tanto a referência à dignidade como efeito do ideal do pai quanto à indignação diante do gozo materno. Por mais que o drama de Hamlet tenha se inaugurado pelo saber do digníssimo pai morto, Lacan não nos deixa esquecer que o príncipe está fixado à mãe. Torna-se, então, evidente a via para abordarmos a questão da onipotência materna.

A voracidade de Gertrudes (LACAN, 1964, p. 331), que a impede de escolher um objeto, aponta para a potência da mãe real, aquela que responde ao filho conforme o seu capricho e inaugura a falta real que o estrutura. É a mãe a primeira a privar e, portanto, a frustrar o sujeito. “A frustração é, por essência, o domínio da reivindicação. Ela diz respeito a algo que é desejado e não obtido, mas que é desejado sem nenhuma referência a qualquer possibilidade de satisfação nem de aquisição” (1956-1957, p. 36).

Essa definição de frustração traz aspectos fundamentais do gozo, pois a impossibilidade de se satisfazer com um objeto específico da necessidade captura o sujeito na dinâmica pulsional, evidenciando o caráter circular da pulsão. Segundo Lacan (1964, p. 180) “o sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer”. Ao contrário do desejo, o gozo é um ponto fixo (MILLER, 2011, p. 53) e isso nos indica que o sujeito está fixado na tentativa de calar a parcialidade da pulsão, sempre renovada pela perene insatisfação que o leva à indignação.

“Desejo e gozo são os dois termos que, em Lacan, repartem o conceito freudiano de libido” (p. 206). A simplicidade desta afirmação de Miller é de extrema pertinência, pois contribui para sustentar a ideia de que não se trata, na psicanálise, de elevar o conceito de dignidade em detrimento da indignação e nem vice-versa. Se foi possível localizar a dignidade próxima ao desejo e indignação ao gozo, não há como privilegiar apenas um dos conceitos.

A análise demanda ao sujeito nomear seu desejo, mas o que se descobre (…) é que não conseguimos nomeá-lo. Ele é insubmisso à nomeação e não se transforma em vontade. Tudo o que conseguimos cingir e nomear do desejo é um gozo. No lugar do Que queres? Obtém-se como resposta, essencialmente: aqui há um gozo. Ou seja, obtém-se uma localização do gozo articulada num dispositivo significante (MILLER, 2011, p. 129).

Dar a palavra a um sujeito significa estar atento ao ponto em que a metonímia se estanca, quando algo do objeto se apresenta, e suportar a indignação que o gozo provoca, escutando o que do sujeito é incomparável.

 Referências.

LACAN, J. (1956-1957). O Seminário, Livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
______. (1960). O Seminário, Livro 8: a transferência . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
______. (1964). O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da PsicanáliseRio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
MILLER, J. -A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.