Daniel Gomes Batelli (CLIPP)
daniel.gbtll@gmail.com
Sendo a letra um tema tão caro à psicanálise lacaniana – em especial nas discussões sobre o autismo – e, ao mesmo tempo, complexo e de difícil apreensão, ferramentas de outras áreas podem ajudar. Nesse caso, será o crochê.
O objetivo não é explicar como isso se dá na carne nem tampouco na clínica, mas apenas possibilitar uma visualização da teoria mesma como apresentada tão claramente por Patricio Álvarez Bayón em seu livro O autismo, entre alíngua e a letra (2024).
Há uma técnica no crochê que se chama popularmente “anel mágico” amplamente utilizada quando o intuito é fazer peças circulares (Ramos, 2014). Utilizar-me-ei dessa técnica mas sempre fazendo referência ao texto do Bayón, para que o foco seja a letra e não o crochê. Essa técnica consiste em se fazer um círculo com a linha e começar a costurar os pontos passando a agulha por dentro desse, quando terminado se tem esse disco com um furo no meio.
Aquele círculo é o que está fazendo borda ao furo e é, ao mesmo tempo, a estrutura essencial para que o disco como tal, possa ser costurado. Sem esse anel que faz a borda, a estrutura não seria possível. Pelos termos utilizados a direção da analogia deve estar mais clara.
Segundo Álvarez:
[…] a inscrição da letra implica a produção da borda simbólica de um furo, isto é, que a letra implica que se produza um furo no real. A letra é a borda do furo. […] Esse esburacamento permite que o real não seja um todo, um absoluto, e que o simbólico possa bordá-lo (Bayón, p.122).
Tem-se, portanto, esse anel mágico que tornarei análogo à Letra por ser isso que instaura no Real um furo. Esse anel é justamente o que possibilita que os pontos, ou os significantes, o bordeiem. Essa borda é, ao mesmo tempo, o que impede que o Real seja absoluto, limitando-o apenas ao furo central, e o que possibilita a estrutura simbólica.
Essa seria, no entanto, a estrutura de um sujeito que fez a passagem, primeiro de alíngua para a letra – a própria constituição do anel – e de a letra para a linguagem – do anel para o encadeamento dos pontos, chamados no crochê de “correntinhas”, mas que chamarei para esse fim, de “cadeias”.
No autismo, como indica Éric Laurent em A batalha do autismo (2014), “o furo está foracluído” de acordo com Bayón. Apesar disso, diz que
isso não implica […] que não haja letra no autismo, mas, sim, que a inscrição de a letra tem outras características. A foraclusão do furo não implica que a letra não se inscreva, mas que se inscreve de um modo diferente (Bayón, p.124).
Pensando no anel mágico, seria como se se puxasse as pontas da linha, formando um nó (explicitado acima).
Tendo em vista essa aparente contradição de, por um lado, a característica central de a letra ser a de designar um furo e, por outro, o autista cuja inscrição da letra foi feita foracluindo o furo, Éric Laurent acrescenta um fator importante à discussão. Segundo sua tese, o autista não rechaça a inscrição da letra em si, mas a equivocidade que ela produz: “Ele coloca que o autista se fixa no invariável do um, tentando que a letra seja igual a si mesma” (Laurent apud Bayón, p.125).
A entrada na linguagem é o que permitiria uma elucubração de saber que faria um recobrimento de sentido desse gozo opaco, esse gozo que retorna na compulsão da repetição.
“No autismo, porém, essa equivocidade do gozo opaco é o que fica rechaçado. O autista tenta aferrar-se à letra como impressão, como igual a si mesma” (Bayón, p.126), ou seja, inequívoca.
Então, a letra autista, se pudermos chamar assim, por essa diferença estrutural, não seria esse anel que permite a entrada da agulha do Outro, que vai tecer os significantes, mas uma letra sem furo, idêntica a si mesma e que abomina a possibilidade de equivocidade introduzida por essa agulha. Ele, o autista, permanece entre alíngua e a letra. E aqui se explicita a diferença entre iteração e repetição.
A repetição implica a equivocidade da linguagem, o retorno de um significante sob uma forma distinta, mergulhado nas metáforas e metonímias intrínsecas ao discurso e condicionadas pelo fantasmático, “que dá uma fixidez à repetição, porque produz uma relação fixa entre o sujeito e o Outro” (Bayón, p.130), mas ela não é igual a si mesma. A repetição se daria na malha do disco, ou seja, já na linguagem.
A iteração, por outro lado, é sempre igual a si, inequívoca. A letra do autista, o nó, é aquela “inequívoca, igual a si mesma, que não consegue inscrever o furo da diferença e o equívoco” (Bayón, p.130). Ela não se repete como sequência, como os pontos contáveis da malha do disco, mas como igual a si mesma, esse nó que não tem continuidade simbólica. “A iteração pertence ao registro de alíngua e a letra, enquanto a repetição pertence ao registro da linguagem, do Outro e da fantasia” (Bayón, p.131).
O simbólico em jogo no autismo seria, portanto, “o de alíngua, mas também o de a letra, na medida em que se esclareça que essa é a letra tomada como iteração e não em sua relação com a linguagem” (Bayón, p.131), ou seja, não o anel que faz a borda central do disco, mas aquele reduzido ao nó. “A letra, no autismo, inscreve-se como iteração, enquanto na neurose, se inscreve como repetição” (Bayón, p.131).