Salvador Dalí, Ángelus arquitectónico de Millet (1933) – Museo Reina Sofia

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri (CLIPP/EBP/AMP)

No Guia Topológico para ‘O aturdito’ [1], o autor cita, sem muita explicação, que: “Aqueles que acompanharam seu ensino (de Lacan) já sabem que o ciclo da demanda – (…) – se fechará com a interpretação, sendo esta um dizer “apofântico” que produz o corte, ficando a causa nomeada como objeto a. (Op. cit, p. 119).

Do grego apophanticos, e, on – adjetivo que afirma ou exprime a afirmação e provém do substantivo apo-phaino: fazer aparecer, trazer à luz, fazer ver, colocar sob os olhos; fazer conhecer; denunciar; mostrar por raciocínio ou por provas; produzir, fazer vir-a-ser, tornar; criar.

Em Aristóteles, no De Interpretatione, vemos que a proposição é a fala dotada de significado, que contém uma afirmação ou uma negação, podendo ser verdadeira ou falsa. Há frases que não interessam à lógica e, portanto, não são proposições: frases que expressam oração, invocação, exclamação e semelhantes ultrapassam os limites da lógica. Na lógica só entra o raciocínio apofântico ou declarativo, ou seja, qualquer enunciado passível de ser verdadeiro ou falso, em função da descrição correta ou não do mundo real, no sentido de realidade tal como refere Aristóteles.

Lacan escreve “O Aturdito” [2], texto escrito no intervalo entre O Seminário 19 e o Seminário 20, enfatizando a diferença entre enunciado e enunciação, no nível dos significantes.

O sujeito faz uma enunciação, sem que saiba que o está dizendo. Aqui aparece o “dizer” para além da enunciação e com “dizer”, Lacan se refere à composição significante e o para além do significante, que é o objeto implicado na enunciação – isto assinala a não existência da relação sexual. O “dizer” ex-siste ao dito, ex-siste ao enunciado verbal, isto é, à proposição.

Em “O Aturdito”, Lacan define dois tipos de dizer: o dizer modal do analisante e o dizer apofântico do analista, demonstrando que ambos evidenciam a não existência da relação sexual.

O termo “apofântico” tal como Lacan o emprega, define o que está fora da proposição no dizer do analista. Vimos acima, que a lógica apofântica aristotélica classifica os enunciados em verdadeiros ou falsos e se aplica à proposições.

O sentido que Lacan dá a “apofântico” liga-se à releitura de Heidegger sobre a lógica apofântica de Aristóteles. Heidegger lê o apofântico no sentido de revelação, de algo anterior à possibilidade de ser verdadeiro ou falso, ou seja, do que se mostra, se faz aparecer.

Neste sentido, o dizer do analista deve revelar a não existência da relação sexual, mas de modo bastante particular: para que tal se dê, o dizer apofântico deve tomar a forma de equívoco e, como diz Lacan : “Nada funciona, portanto, senão pelo equívoco significante”, o que ele complementa no Seminário 23 dizendo: “Com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera”.

Em “O aturdito”, Lacan define três tipos de equívoco que cabem ao analista em sua interpretação: homofônicos; gramaticais;lógicos. Estas três maneiras de equivocar a linguagem seriam apofânticas, no sentido de revelar o nonsense do universo significante, apontando para o além, para o ex-sistente, o real.


[1] CHAPUIS, Jorge. Guia Topológico para o “Aturdito” – um abuso imaginário e seu além. São Paulo: Aller Ed., 2019.
[2] LACAN. J. O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. Primeira publicação em Scilicet, nº 4. Paris: Seuil, 1973.