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“É no real que estará tocando?”

Por Carmen S. Cervelatti

Não se desconhece o dilema de Freud sobre o enigma da feminilidade, como também as referências de Lacan ao se dizer mulher enquanto analista, ou ao afirmar que as mulheres analistas ou são as melhores ou as piores, vindo a convocá-las que tentem dizer como gozam. A mulher sempre suscita questões e põe o sujeitos diante de hiâncias.

Tratar a questão do título reflete o percurso deste trabalho, partindo da fala de mulher para articular qual o lugar que mais radicalmente a caracteriza e o que este faz operar.

 

A Episteme, o Mito e o Real

Lacan, no Seminário 8 A Transferência, ao trabalhar O Banquete, de Platão, localiza uma passagem fundamental: depois dos vários discursos consagrados aos mais belos elogios ao amor, Sócrates toma a palavra. Num primeiro momento interroga o saber pelo significante (episteme) e depois faz falar Diotima. É por algo escapar ao saber de Sócrates que ele se “diociza” (Spaltung do sujeito), e faz falar uma mulher, “por que não a mulher que está nele?”[1]

Com esta passagem, a da “episteme ao mito”, o que Lacan estaria marcando? A necessidade de um além do saber do plano da episteme. É na medida em que algo escapa ao saber do significante e de sua coerência de significante, enfim, daquilo que o supera por ser patente que ele não dá mais conta do que faz interrogar o ser, só assim, na sutileza de um passo, modifica-se o tom do discurso.

De Diotima, a estrangeira, ressalto dois momentos de sua fala:

Interrogando o Amor, aproxima-o do gênio: “algo entre mortal e imortal” – o daimon –que tem o poder de intermediar o diálogo entre esses dois planos com a função de interpretar e transmitir. Assim ela ensina, conta a história do nascimento do Amor, o mito: Amor é filho de Poros (Recurso) e Penia (Pobreza, sem recurso, a aporia, o impasse). É quando Poros está adormecido que, sorrateiramente, Penia deita-se ao seu lado e fica prenhe de Poros.

Sua fala termina assim: “Ou então consideras que somente então, quando vir o belo com aquilo que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sobras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?” [2]

Com estes dois momentos privilegiados da fala de Sócrates, dita pela boca de mulher, articulo uma das possíveis leituras, desde que outras mais são possíveis, donde se deduz que essa fala nos deixa diante de hiâncias, portanto passível de significações diversas.

 

O significante, o objeto e o vazio

O significante tem dupla função. Primeiramente, na medida em que sempre remete a outro, infinitamente, instala a cadeia que permite o saber, articulando as significações – esta a sua estrutura: o que representa o sujeito para outro significante. Mas, por ser um processo metonímico, acaba por apontar algo mais no horizonte, um algo indizível, tornado assim causa. No final das contas, não há possibilidade de dizer tudo ou mesmo de haver uma significação última que dê conta do todo do ser. É o trabalho do significante e seu mais-além.

Esta outra função, a do limite da cadeia significante, é a porta que permite a entrada em cena do objeto. O limite favorecendo a construção do fantasma, com sua estrutura ficcional, de mito. Do sujeito suposto ao saber  ao sujeito suposto ao desejo – simulacro -, as posições que o analista “encarna”, se deixa ser feito de, mas desde o vazio, desde a atopia.

No campo do saber constata-se então um duplo sentido: ao mesmo tempo em que o significante o produz também aponta para um algo que nada significa. São nas voltas do discurso que se engendra o vazio, que, enquanto tal, é um lugar absoluto, de puro desejo, atópico.

 

O Mito e o discurso histérico

Neste momento, que é de virada, o caminho só pode ser a via do mito, da ficção montada pelo sujeito de quê objeto ele se fez frente ao desejo do Outro.

“É no real que estará tocando?”

Respondo com Lacan: “Todo mito se refere ao inexplicável do real” [3], e ainda: “O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura” [4]. Momento mais que necessário, fundamental, que vai tentar suprir as hiâncias mas que não faz mais que reafirmá-las.

Aproximando a questão do mito ao nível dos discursos, localizamos a passagem “da episteme ao mito”, pinçada da leitura de Lacan acerca do Banquete, no giro do discurso do mestre para o discurso da histérica.

S1   ®  S2          ¾®         S  ®   S1 

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Na histerização do discurso reside a condição para a construção do fantasma, cujos elementos de sua fórmula se encontram, na experiência analítica, do lado do analisando ($, a). O discurso histérico é da ordem do mito. E, por ser da histérica, é aqui que a mulher se faz de homem.

 

A dialética das posições:  O homem e A/ mulher – As fórmulas da sexuação

É evidente que insisto na mulher, que a fala possa se transposicionar em dizer. “É no real que (ela) estará tocando?“. Já que tomei emprestada a questão, pretendo situar o lugar da mulher neste ponto, de real, desde a articulação do ser falante nas posições masculina e feminina, cuja possibilidade reside num movimento dialético. Isso nos permite novas fórmulas … o quadro das fórmulas da sexuação, proposto por Lacan noSeminário 20 – Mais, ainda [5]

Nesse quadro A/ mulher se encontra no lugar em que a questão do Outro se coloca. Por ser da ordem do não-todo não pode ser escrita com mulher ou A mulher, sua escrita é com A maiúsculo e barrado – A/, pois sua posição é de dividida. É da ordem do enigma pois não é um dado a priori no nível do inconsciente e de suas representações.

Como o homem, ela também tem que se haver com o Outro mas não encontra no significante falo o seu representante e sustentação, este só pode identificar a posição masculina. Ela só pode fazer referência ao falo enquanto convoca o homem __(“x fx) neste lugar (f), desde que ela é da ordem da exceção a esse conjunto, o não-todo (“xfx).

A/ mulher só advém pela confrontação com a falta radical do Outro desde que não há um significante que a identifique, pois quando menina sua mãe, por também não ter o falo, só pode fornecê-lo como suporte da identificação, mesmo porque primeiramente ela acreditava que a mãe o detinha para poder depois se dar conta do engano – ela não o possuía.

Mas assim só restaria à mulher ou se fazer de homem (histérica) ou ser mãe? Toda a questão reside nesse ponto: não haveria outra saída para a mulher?

Além da referência ao falo há, no quadro das fórmulas da sexuação, uma outra parte, indicada pelo vetor A/ ® S (A/), apontando o Outro  não significável pela fala, o Outro simbólico furado, do qual nada se sabe, só se pode supor, “… é na medida em que existe o Outro, enquanto lugar da fala, um significante S(A/) que diz que há furo, que esse furo pode ser suposto real e demarcado como tal.”[6]. Este Outro não é um outro Outro, é a outra face do Outro: o que ele tem de mais radical, sua consistência de real.

Desde A/, a mulher aponta para o real, instala o novo, o não-dialetizável do jogo do significante, a falência, o insucesso do inconsciente, o seu não-todo.

S(A/) é um significante que nada significa desde que é o significante do inominável, da alteridade radical, da falta absoluta. E quando a isso, que é só furo, se tenta preencher A/ mulher passa a responder como a mulher, ou seja, responde ao homem como objeto de sua fantasia. E, se for analista, só pode ser localizada  naquilo que Lacan chama das “piores analistas” por se situar no discurso histérico ou então na posição materna de deter o falo.

O matema S(A/) localiza o segredo, o enigmático que uma mulher porta, é “a impossibilidade de dizer toda a verdade”[7], e é nisso que reside toda a opacidade desse lugar.

 

O Matema e a Transmissão

O matema, isso que não dá para ser ensinado em sua totalidade, que na sua materialidade não quer dizer nada, evoca o “por de si”, convidando a articular com aquilo que se precipita de percurso teórico e analítico de cada um. Definido como “o que de real se ensina, os matemas são de natureza a se coordenar nesta ausência tomada do real”[8]. É nessa ausência que o mito encontra sua eficácia inicial, ao recobrir o real com ficção.

O saber remete à verdade, e a verdade, no que ela tem de não-toda, de abertura, reencontra-se na escritura S(A/) o que ela permite: convoca a invenção desse significante – talvez o segredo esteja em inventar algo, qualquer que seja, desde que possa ter a assinatura do Nome Próprio como representativo do significante do grande Outro barrado.

A transmissibilidade da psicanálise evidencia a necessidade do sujeito se incluir no que é transmitido, que queira saber sem deixar de por de si. Esse querer saber não encontra sua validade no entendimento, na compreensão da teoria, e sim evoca o interrogar desde que o saber esteja no lugar da verdade, e porque não no lugar da mulher (como causa do desejo)? A referência é ao discurso do analista: a S2.

Inventar S(A/) e reinventar a psicanálise … Reinventar a teoria numa formulação de retorno àquilo que de real se pôde operar – da própria experiência de análise e das letras de Freud e de Lacan.

Texto publicado no Correio n. 3 – Setembro 93 (pp. 25 a 30)

Referências Bibliográficas:

[1] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 8 – A Transferência, p. 123, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[2] PLATÃO. O Banquete. Coleção “Os Pensadores”, p. 43. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Os grifos são da autora.
[3] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8 – A Transferência, p. 77. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[4] LACAN, Jacques. Televisão, p. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
[5] LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20 – Mais, ainda, p. 105, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.
[6] ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher?, p. 233, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1987.
[7] LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20, Mais, ainda., p. 128.
[8] LACAN, Jacques. L’Étourdit. Tradução de Luiz de Souza Dantas Forbes, para uso interno da Biblioteca Freudiana Brasileira, p. 34.