Mariana Cavichioli Gomes Almeida

mariana.c.almeida@uol.com.br

 

Situamos alguns pontos que Lacan formula na abertura do Seminário 3As Psicoses (2010 [1955–1956]), importantes na medida em que orientam perguntas centrais ao campo psicanalítico, que serão desenvolvidas ao longo das lições de novembro de 1955 a julho de 1956. Não caberá a este texto respondê-las, mas circunscrever as articulações que Lacan traçou ao abordar as psicoses como uma “questão” que desponta em seu retorno a Freud. Buscamos esboçar algo sobre a particularidade do olhar psicanalítico sobre os problemas nosográficos das psicoses, tomando como referência esse momento em que Lacan tem a importante tarefa de retomar parte de seu percurso na psiquiatria para subvertê-lo e ressaltar, na psicanálise, o que lhe é próprio, considerando, conforme nos aponta Miller, a necessidade de “seccionar as aderências que ainda retêm a clínica analítica na psiquiátrica” (MILLER, 1982, p.9).

Ainda que Freud não ignorasse a esquizofrenia e admirasse os trabalhos da escola de Zurique ligada a Bleuler, Lacan menciona que ele privilegiou a paranoia, o que podemos notar no empenho de Freud com o caso Schreber, para o qual inicialmente emprega os termos “paranoia” ou “demência paranoica”. Contudo, no final desse caso, Freud traça uma linha divisória que é, para Lacan, um gesto fundamental e circunscreve um ponto de orientação: de um lado a paranoia, de outro a parafrenia, termo que ele emprega para designar o campo das esquizofrenias. Nessa linha divisória, Freud insiste em manter a paranoia como tipo clínico autônomo, mesmo quando nela se manifestam “traços esquizofrênicos”. Tal posição indica seu esforço em definir um critério diagnóstico que ultrapassa a descrição de fenômenos observáveis, fundamentando-se antes em “outra localização da fixação predisponente [da libido] e um outro mecanismo do retorno [do reprimido] (formação de sintomas)” (FREUD, 2017 [1911], p. 100).

Freud faz alusão a um de seus discípulos, Abraham, que aborda tais nosologias de acordo com a localização do desprendimento da libido nas fases do desenvolvimento psicossexual e regressão ao Eu. Jacques-Alain Miller reconhece que ao introduzir o termo “parafrenia”, Freud redefiniu o campo clínico, “mudando o sentido que o termo tinha na clínica tradicional” (MILLER, 1982, p. 8). A ênfase diagnóstica recai, portanto, em uma estrutura libidinal em que o sucesso na retirada da libido implica, na parafrenia, a regressão “até o pleno abandono do amor objetal e retorno ao autoerotismo infantil” (FREUD, 2017 [1911], p.101); o fracasso da retirada da libido implica em projeção e paranoia; e fracasso parcial, em formas intermediárias como a demência paranoide.

Podemos pensar que a abertura do Seminário 3 traz um movimento análogo quando Lacan faz alusão a seu percurso em sua Tese de Doutorado de 1932. Nela, Lacan ressalta que na França, depois do declínio das concepções de Magnan (degenerescência), nada mais se opunha a considerar as psicoses paranóicas como “o próprio tipo dos delírios de origem psicológica” (Lacan, 1987 [1932], p. 13), e, por contraste, reservar às psicoses alucinatórias o traço de “automatismo”. Clérambault entra justamente para marcar a diferença entre (1) os delírios interpretativos, tidos como psicogênicos, e (2) os fenômenos elementares das psicoses alucinatórias, definidos por seu automatismo. Ele busca responder o problema da delimitação nosológica: como distinguir, no campo das psicoses, aquilo que se deve à “constituição psicopática”, entendida como (1) “disposição determinada desses traços psicológicos que constituem o objeto do estudo do ‘caráter’” (LACAN, 1987 [1932], p. 13), (2) daquilo que pertence a fenômenos irredutíveis, como os automatismos. Em sua tese, Lacan não apenas se posiciona, inspirado por Clérambault, contra a via psicologizante em alguns aspectos, mas também integra à análise do caso Aimée os referenciais psicanalíticos da libido e da regressão ao Eu, citando a tabela de Abraham como hipótese para o bom prognóstico do caso (LACAN, 1987 [1932], p. 259). Contudo, Lacan, em 1932, ainda não estabelece com tanta clareza que o delírio paranoico, na ausência de automatismo, não se organiza como desenvolvimento da personalidade. Esse rompimento ocorre, posteriormente, com seu distanciamento ainda mais radical da psiquiatria francesa, mas que, ainda assim, preserva a importância de Clérambault no estudo nosográfico das psicoses.

Clérambault é lembrado por Lacan como um clínico de grande originalidade especialmente pela sua noção de automatismo mental e pela sua descrição da irrupção de fenômenos elementares que não se deixam explicar por cadeias de compreensão psicológica – Lacan chama de anideico, ou seja, “não conforme uma sequência de ideias” (LACAN, 2010 [1955], p.14). Os fenômenos psicóticos contrapõem-se às relações de compreensão de Jaspers. Esse ponto nos convida a pensar essa ruptura com as cadeias de compreensão não apenas no campo das psicoses sem estrutura delirante, mas no âmbito da clínica estrutural das psicoses em geral, já que Clérambault é tomado por Lacan também como via para reconhecer formas de reorganização para além da clínica tradicional da esquizofrenia. Aliás, vale lembrar que, como ressalta Miller, o termo esquizofrenia não pertence à terminologia clínica própria de Lacan, que quase nunca usa a palavra e, quando o faz, utiliza-se da aspas (“o dito esquizofrênico”) (MILLER, 1982, p.8). Não se trata de uma recusa radical da classificação da esquizofrenia, mas de pensar que a incorporação de Clérambault e o tensionamento dessa classificação permite também a Lacan estender o alcance de suas conclusões no campo psicanalítico e afirmar, nesse contexto, que o “grande segredo da psicanálise” é que não há psicogênese (LACAN, 2010 [1955], p.16), seu essencial não se atém aos “mitos” da unidade da personalidade, da síntese, das funções superiores e inferiores, mas mostra “a quebra, o despedaçamento, a dilaceração, a negação dos fatos, o desconhecimento da experiência mais imediata” (LACAN, 2010 [1955], p. 16).

Lacan reinscreve a questão no campo da linguagem. Na demência paranoica, Lacan aborda a leitura freudiana do caso Schreber, mais especificamente o delírio, como linguagem a ser decifrada como hieróglifo, isto é, algo que revela que o inconsciente fala, inclusive na psicose. Freud identifica repetições, reconstrói cadeias de significação, como uma linguagem estruturada, demonstrando a análise simbólica do caso Schreber e que “só pela porta de entrada do simbólico é que se consegue penetrá-lo” (LACAN, 2010 [1955], p. 20). Surge então um novo problema nosológico: se a análise do delírio se reduzisse a uma leitura simbólica, por que ela não opera como na neurose? Lacan traz, então, essa formulação preciosa de que, na psicose, “o inconsciente está à superfície” (LACAN, 2010 [1955], p.21) e conclui que “não é (…) desse traço negativo de ser um Unbewusst, um não consciente, que o inconsciente guarda sua eficácia” (LACAN, 2010 [1955], p.21). O inconsciente pode estar, portanto, à superfície e articulado sem ser reconhecido. Ele compara o trabalho de Freud ao de como traduzir uma língua estrangeira e afirma que “o sujeito psicótico ignora a língua que ele fala” (LACAN, 2010 [1955], p.21). A questão das psicoses transforma-se: não é só por que isso não é assumido, mas por que aparece, para o psicótico, no real. Toda a abordagem que Lacan faz sobre a Verneinung e que introduz a noção de Bejahung primordial, uma “admissão no sentido do simbólico que pode faltar” (LACAN, 2010 [1955], p.21), contribui para que já se esboce um novo campo nosológico “preliminar”, voltado “a todo tratamento possível da psicose”. No texto de 1959, Lacan retoma esse percurso, situando a foraclusão (Verwerfung) do Nome-do-Pai como o ponto estrutural que dá fundamento a esse campo preliminar (LACAN, 2010 [1959]). Ainda que não esteja no escopo desse curto texto aprofundar esse ponto estrutural, podemos ver no gesto de Lacan, assim como no de Freud, a tensão e o desenvolvimento da psicanálise em articulação com a psicopatologia de sua época.

 

Referências bibliográficas:
FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (O caso Schreber) [1911]. In: ______. Obras completas: O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros textos (1911–1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, Jacques. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade [1932]. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1987.
LACAN, Jacques. (2010 [1955–1956]) O seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose [1959]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
MILLER, Jacques-Alain. Esquizofrenia y paranoia. In: Psicosis y Psicoanalisis. Buenos Aires: Ediciones, Manantial, 1985, p.7-30 (tradução nossa).