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ESCOLA X INSTITUTO: TENSÕES, IMPASSES

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri (CLIPP/ EBP/AMP)

A Escola de Lacan é uma Escola para psicanalistas, oferece formação a psicanalistas; os Institutos do Campo Freudiano, por outro lado, estão voltados para elucidação de questões epistêmicas que, ao provocar o sujeito, apoiam a formação oferecida pela Escola.

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Lacan funda a Escola Freudiana de Paris (1964) para reconduzir “à práxis original que ele (Freud) instituiu sob o nome de Psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo, que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego” i. A Escola de Lacan se propõe à constante crítica em relação à Psicanálise e toma como dever restituir “a sega cortante” da verdade que Freud trouxe, na experiência analítica.

A “Proposição sobre o Psicanalista da Escola” (1967) coloca como princípio que “o psicanalista só se autoriza de si mesmo”, o que não impede que “a Escola garanta que um analista dependa de sua formação” ii. O “autorizar-se de si mesmo”, muito citado e nem sempre bem entendido, lembra Freud quando este diz não concordar com o mandamento civilizatório “amar ao próximo como a si mesmo”. Há necessidade de manter a distância êxtima que possibilita, ao mesmo tempo, a constituição do próximo e a do sujeito iii.

Freud denuncia que algo na relação entre os sujeitos não é complementar, o laço social é particularmente difícil iv, o que tornaria este mandamento impossível de ser cumprido. Pode-se pensar que um dos motivos para negá-lo seria o absoluto desconhecimento do “si mesmo”.

No seminário Les non-dupes errent v, Lacan diz que o “psicanalista só se autoriza por si mesmo”, acrescentando “e por alguns outros”. Além do analista, Lacan afirma também que o ser sexuado “só se autoriza de si mesmo”, acrescentando também, “de alguns outros”. Cabe ao sujeito autorizar-se a ocupar o lugar de ser sexuado e, a partir desta autorização, este sujeito não estará mais sozinho, precisará de outros que o nomeiem e o reconheçam (ou não), na posição que decidiu ocupar – há necessidade de ratificar a posição que o sujeito se autorizou a assumir.

Falando da questão da autorização na sexuação, Lacan afirma que, da mesma forma que ocorre com o ser sexuado (que precisa autorizar-se de si mesmo), o analista “só se autoriza de si mesmo”, mas não estará sozinho para isso, o que não significa que qualquer um possa autorizar-se a ocupar o lugar do analista. O autorizar-se de “si mesmo” implica passar pela experiência da própria análise, o que o faz “tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar-se psicanalista da própria experiência” vi. Lacan coloca o dispositivo do passe a serviço da instituição, que deve acolher o testemunho da passagem de psicanalisante a psicanalista. Mas não se é obrigado a fazê-lo, há uma diferença importante entre o passe clínico e o passe institucional – este implica aquele, mas não o contrário. “Esse lugar (AE) implica que se queira ocupá-lo: só se pode estar nele por tê-lo demandado de fato, senão formalmente” vii.

No seminário citado (Les non-dupes errent), Lacan alerta que, apesar de o analista “autorizar-se de si mesmo”, ele não estará sozinho nessa nomeação. Assim como o ser sexuado só se autoriza de si mesmo, mas precisa de “alguns outros”, também o psicanalista só se autoriza por si mesmo e de “alguns outros”.

Há uma diferença entre nomear alguém e autorizá-lo a exercer a psicanálise. A instituição pode nomear o psicanalista, porém a autorização para ocupar este lugar depende do desejo do analista, quer dizer, de sustentar esse desejo no lugar do objeto “a”, buscando a diferença absoluta no analisante.

Miller cria o Instituto do Campo Freudiano (1987), buscando promover a investigação e o ensino da psicanálise de orientação lacaniana. Primeiro a Escola, depois o Instituto. Em São Paulo ocorreu o contrário: o Instituto (IPPSP) fundado em 1991 surgiu da fusão de três grupos lacanianos (Biblioteca Freudiana Brasileira, Escrita e Associação Livre), antes da fundação da Escola em 1995, e mesmo antes da “Iniciativa Escola” em 1993. No ano 2000, o IPPSP se dividiu em três Institutos: CLIN-a, CLIPP e IPLA.

A fundação do Instituto do Campo Freudiano, segundo Miller, partiu da mesma necessidade que levou Lacan a propor o Departamento de Psicanálise da Universidade Paris 8, ou seja, criar um aguilhão para a Escola.

A Escola é uma instituição analítica em que o discurso do analista é dominante; o Instituto é uma instituição para-universitária, o que não significa que esteja aí, no comando, o discurso universitário. Pode-se dizer que o Instituto faz “semblante de universidade” e o cuidado é para que a máscara não fique “pegada à cara” (como diz Fernando Pessoa em Tabacaria), a ponto de não mais se distinguir como semblante.

Haveria um discurso próprio ao Instituto? Se no Instituto circular o Discurso Universitário, ou seja, se a tentativa for a transmissão de um saber em sua totalidade, produz-se o mal-estar por estar o sujeito recalcado na posição de produção, o que o torna impotente para alcançar o significante mestre que se localiza no lugar da verdade. Mas então, deveria circular o Discurso do Analista?

Lacan se apresentou a partir da posição de ensinante ao fundar sua Escola, buscando a transmissão de um saber vivo, trazendo a questão de como abordar e interrogar este saber. Qual é o discurso que cabe ao ensinante?

Para Laurent, os psicanalistas não aprendem a ensinar visto que seu ofício é a prática da psicanálise e se um analista pode autorizar-se a falar como ensinante é a partir daquilo que falha. Ensinar a partir do que falha, ou seja, levar em conta o real que está em jogo e leva à dimensão do impossível no ensinar, falha atrelada a um fracasso inerente, diante do ideal preconizado pelo Discurso Universitário.

O matema, forma de transmissão integral da psicanálise (conforme Lacan postula em algum momento), aproxima-se do Discurso Universitário. Mas o matema não zera o mal-entendido, o escrito matêmico implica a linguagem que reintroduz o mal-entendido, não exclui o furo, a falha sempre presente e que demanda a colocação do sujeito em cena. Introduzir a falha significa dizer que o psicanalista tenta “ensinar o que a psicanálise lhe ensina”, a partir de sua própria análise em primeiro lugar, das análises que ele conduz, das supervisões a que se submeteu e das que supervisionou, dos estudos epistêmicos a que se dedica. Nesse sentido, altera-se a forma estabelecida do ensino preconizado pela universidade.

Aquele que ensina no Instituto deve saber articular o vivido de sua época com a psicanálise, permitindo interpretar o seu tempo com o que advém enquanto demanda social. A psicanálise lacaniana deve estar conectada a seu período histórico, ponto fundamental para o “bom ensino” no Instituto.

No Campo Freudiano, os Institutos vieram como tentativa de ensinar o vivo, à diferença da universidade que traz um saber estabelecido, morto. Sendo o Instituto um instrumento para verificar a maneira como é tratado o saber explícito que pode ser extraído da prática da psicanálise, deve permitir verificar se este saber está sendo tratado com o respeito que lhe é devido.

Sabe-se porque é necessária a Escola. Por que é necessário o Instituto?”, pergunta Miller. A resposta possível é que o Instituto é necessário porque o Discurso Analítico tende a se destruir, o saber suposto que suporta a psicanálise também a corrói.

O ensino no Instituto é um modo de ensino que advém do Discurso Analítico e, portanto, da Escola, onde este discurso tende a se autodestruir em virtude da suposição de saber, que vai perdendo sua força na medida em que uma análise se encaminha para seu final.

Escola e Instituto estão colocados diante de duas lógicas distintas de funcionamento: a Escola se sustenta em um saber suposto e o Instituto em um saber exposto – há uma tensão entre estes dois saberes; trabalho de transferência e transferência de trabalho; psicanálise em intensão e psicanálise em extensão. Tensão que deve ser mantida.

Se o discurso analítico tende a se fechar sobre si, a corroer-se quando não confrontado a outro discurso, o contraponto do saber exposto próprio ao Instituto, como ponto de basta ao poder auto corrosivo do discurso analítico, deve vigorar. Não se trata, no entanto, de confrontar o discurso analítico com qualquer outro, mas com um discurso que comporte a dimensão do vivo, que é o que se espera do Instituto, enquanto aguilhão da Escola.

Tanto para Miller, quanto para Laurent, o Instituto seria o lugar por excelência de verificação do ensino veiculado na Escola. E por onde passa o ensino na Escola? Lacan na Proposição diz que “… a Escola pode garantir a relação do analista com a formação que ela dispensa” viii. Ao que parece, é esta a garantia a ser aguilhoada.

Escola e Instituto se mantêm êxtimos entre si. Ampliar a pergunta sobre o ensino na Escola, numa tentativa de fazer maior diferenciação com o do Instituto, faz pensar o Ensino do AE, do AME, do Membro que oferece seminários por conta e risco.

Temos em São Paulo três Institutos independentes, com trabalhos distintos, o que parece evidenciar o litoral Escola-Instituto, ou seja, evidenciar uma clara diferenciação entre ambos.

BIBLIOGRAFIA

Miller, J-A. (1998). Tese Sobre o Instituto do Campo Freudiano. In: Almanaque. Revista do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. V. 1. Belo Horizonte: IPSM-MG, s. p.

Laurent, É. Lo imposible de enseñar. In: Del Edipo a La sexuación. Buenos Aires: Paidós, 2008.

Lacan, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 (1967) sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. Ato de fundação (1964). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. Les non-dupes errent (1973/1974). Inédito.

NOTAS 

i Lacan, 1964, p. 235 [229].

ii Lacan, 1967, p. 248 [243]

iii No seminário 16, “De um Outro ao outro”, Lacan trabalha esta questão de modo primoroso.

iv Freud, no “Mal Estar da Cultura/Civilização expõe essa dificuldade.

v Lição de 9 de abril de 1974.

vi Lacan, 1967, p. 248 [243]

vii Lacan, Idem, Ibidem, p. 248 [243]

viii Lacan, 1967, 249 [244].