Niraldo de Oliveira Santos (CLIPP/EBP/AMP)

Este número da revista eletrônica Hades reúne sete textos de associados da CLIPP que testemunham os efeitos de seu trabalho a partir da experiência como cartelizantes. Neles, pode-se entrever — de modo explícito ou implícito — como as questões inseridas no dispositivo do cartel, inventado por Lacan, puderam ser construídas e elaboradas.

Em D’Écolage, Lacan apresenta o cartel como “o órgão de base” da Escola, formulando cinco proposições fundamentais:

“Primeiramente – Quatro se escolhem para prosseguirem num trabalho que deve ter um produto (…) próprio a cada um, e não coletivo; em segundo lugar – A conjunção dos quatro se faz em torno de um Mais-um, que, sendo qualquer um, deve ser alguém. Cabe a ele zelar pelos efeitos internos da iniciativa e provocar a elaboração; em terceiro lugar – Para prevenir o efeito de cola, deve-se fazer permutação, sendo o término fixado no final de um ano, no máximo dois; em quarto lugar – Nenhum progresso deve ser esperado, a não ser uma exposição periódica dos resultados como das crises de trabalho; quinto – O sorteio assegurará a renovação regular dos limites demarcados com a finalidade de vetorizar o conjunto”[1].

É patente que, nas proposições lacanianas, o cartel se configura como uma experiência singular e decisiva na formação do psicanalista. A leitura dos textos que compõem esta edição de Hades, para além de suas contribuições clínicas e epistêmicas, permite entrever uma das funções essenciais de um Instituto do Campo Freudiano: servir de “aguilhão em direção à Escola”[2].

Na interface da psicanálise com a política, os discursos e o laço social, destacam-se dois trabalhos: A psicanálise na era do homem-empresa e do significante “neuro”, de Daniela Affonso, no qual a autora examina com precisão os modos pelos quais a ciência se aliou às tecnologias de modelagem e sustentação do homem-empresa, problematizando a posição da psicanálise nesse cenário; e Objeto mais-de-gozar – suporte corporal dos discursos, de Maria Bernadette S. de S. Pitteri, que interroga o corpo como lugar de gozo e de sustentação discursiva, trazendo a questão crucial do que possibilita — ou ao menos favorece — uma torção nos discursos, condição essencial para que a experiência analítica possa advir.

Como a experiência psicanalítica não se efetua sem transferência nem sem ato analítico, temos Amor de transferência em tempos de amor líquido, de Débora Garcia, que nos mostra como um cartel, à semelhança de uma análise, exige uma mudança de posição subjetiva: “Ao dar o primeiro passo, já não é possível estar no ponto de partida”, escreve Débora. Sônia Perazzolo, em Seria o ato analítico um ato de amor? prossegue a interrogação acerca do amor de transferência e da interpretação na análise, desta vez com ênfase no ato: “O que seria esse ato?”; “Seria um ato analítico (…) também um ato de amor?”.

Percorrendo o ensino de Lacan, entre estrutura e topologia, João Paulo Desconci, em Metáfora, estrutura e real, demonstra como a topologia, “mais além de uma metáfora, é o real mesmo em jogo na experiência clínica”. Em Histeria rígida e a materialidade da escrita, Kátia Ribeiro Nadeau retoma diferentes momentos do ensino lacaniano para indagar o que “a histeria ensina sobre algo do sintoma que não passa pelo pai”, abordando uma modalidade da histeria que “se sustenta sozinha”. Por fim, em O gozo do Outro e a solução topológica, Claudio Ivan Bezerra pergunta: “onde o sujeito perverso encontra o seu gozo?”, mobilizando também a vertente borromeana para abordar os impasses dessa forma de gozo no tratamento psicanalítico.

Este número de Hades conta também com mais um episódio do PodCast CLIPP, uma entrevista conduzida por Cláudio Ivan Bezerra com Eduardo César Benedicto, que foi diretor de cartéis da EBP – Seção São Paulo, no biênio 2023-2025. Cartéis: modos de uso é uma conversa tão importante quanto instigante, onde são abordados os fundamentos da experiência de cartel: funcionamento, modalidades, o produto, a inscrição na Escola, a dissolução, a função do +1, as Jornadas de Cartéis. No episódio, Eduardo Benedicto expõe a importância desta “máquina de guerra contra a hierarquia do saber”, onde o que está em causa é uma elaboração de saber provocado sob transferência e que se contrapõe ao discurso do mestre, evidenciando a originalidade da formação do psicanalista.

A leitura destes textos e a escuta do podcast nos permite vislumbrar como o dispositivo do cartel propicia, em alguma medida, a experiência de Escola. Como afirma Romildo do Rêgo Barros: “A decisão de entrar em um cartel nunca era separada do desejo de contribuir para a Escola, para essa Escola e não outra. (…) A Escola, ao invés de simplesmente dispensar um ensino, passa na verdade a recebê-lo sob a forma dos trabalhos construídos nos cartéis”[3].

Boa leitura/escuta!

 


[1] LACAN, J. D’Écolage. In: Manuais de Cartéis. Belo Horizonte: EBP-MG. Editora Scriptum, 2010, p. 14.
[2] MILLER, J-A. Tese sobre o Instituto no Campo Freudiano. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, ano. 1, n. 1, nov. 1998.
[3] BARROS, R.R. Os cartéis na EBP (entrevista realizada por Rodrigo Lyra e Nohemí Brown). In: Cartel, novas leituras. Nohemi Ibáñez Brown (org). São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021, p. 55.