Acerca do argumento do filme, Corpo (Rossana Foglio e Rubens Rwlad, SP.2007), trata-se das reviravoltas ocorridas a um grupo de indivíduos após a descoberta de um corpo saponificado entre ossadas encontradas em um cemitério clandestino na periferia de São Paulo, provavelmente datadas do período da ditadura militar no Brasil, e das tentativas de se o identificar.
O que se pretende abordar é o impacto desse achado sobre os personagens, como passam a funcionar com a descoberta desse cadáver desconhecido, não-identificado, não-identificável, o que se pode depreender disso no tocante à teoria psicanalítica.
Comecemos esclarecendo o que é o processo de saponificação: no endereço www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_2040.html, explica-se que se trata de um “processo transformativo de conservação em que o cadáver adquire consistência untuosa, mole, como sabão ou cera. Às vezes quebradiça, e tonalidade amarelo-escuro, exalando odor de queijo rançoso; as condições exigidas para o surgimento da saponificação cadavérica são: solo argiloso e úmido, que permite a embebição e dificulta, sobremaneira, a aeração, e um estágio regularmente avançado de putrefação.”
Tem-se assim um corpo, um cadáver, que é considerado por alguns teóricos do Direito Civil, como “coisa”; circula ainda a idéia de que “cadáver” seria uma abreviatura da expressão latina CAro DAta VERmis – carne dada aos vermes…
Parece-nos evidente o grau de reificação em que se encontra um cadáver lato sensu; ocorre que este um encontrado em tão particular estado de conservação, eleito dentre todos os outros que seguiram o curso habitual do processo de decomposição cadavérica para manter-se – ou ser mantido – preservado, não-identificado, não-identificável, esse um-corpo, é eleito pelos personagens do filme em suas tramas. Elegemo-lo também. Para tanto, propomos aqui uma aproximação com um texto dos Escritos[4],“O seminário sobre ‘A carta roubada’”:
“O que nos interessa hoje é a maneira como os sujeitos se revezam em seu deslocamento no decorrer da repetição intersubjetiva. Veremos que seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu trio esse significante puro que é a carta roubada.” 9p. 18
Substitua-se “carta roubada” por “corpo encontrado” e se tem o mote do presente trabalho. Em se tratando de uma obra cinematográfica, áudio-visual, uma primeira proposição, de que não nos furtaremos, por tentadora, é a de considerar a questão do olhar, também abordada em “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”[5], a que referimos o leitor. Retomando o “Seminário sobre ‘A carta roubada’”:
“Esse olhar supõe dois outros (…) Três tempos, portanto, ordenando três olhares, sustentados por três sujeitos, alternadamente encarnados por pessoas diferentes.
O primeiro é de um olhar que nada vê: é o rei, é a polícia.
O segundo, o de um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta: é a rainha e, depois, o ministro.
O terceiro é o que vê, desses dois olhares, que eles deixam a descoberto o que é para esconder, para que disso se apodere quem quiser: é o ministro e, por fim, Dupin.” (p.17)
Parece-nos muito convidativa a equivalência das personagens de Poe (o Rei, a Rainha, a polícia, o ministro e Dupin) às do filme. O primeiro olhar poderia ser atribuído a Lara e, em dado momento, ao próprio Artur – ela, que não vê nada além da burocracia em que se embebeda, cega à hiância do anonimato do corpo; nessa mesma condição se encontra Artur ante tudo que não seja o corpo, do que será arrancado, ao menos parcialmente, pela presença de Fernanda.
O segundo olhar, atribuível a Artur perante a indiferença de Lara – este é o estopim para toda sua criação fantasiosa a respeito da origem do corpo, de que não temos qualquer confirmação ao longo da obra – e também a Fernanda, ante a paralisia de Artur, enfeitiçado que está por sua fantasia.
Já do terceiro olhar, podemos encarar como seus detentores tanto Teresa (referimo-nos aqui à Teresa que comparece viva ao necrotério, convocada, ao final do filme) quanto o espectador (se nos for permitida, para este último, essa leitura metamidiática): a eles é dado ver quanto uns e outros são incapazes de ver.
Nessa ronda, uma “categoria” de observador é sempre capaz de ver algo além da precedente, e também algo relacionado à maneira de ver dos integrantes da categoria anterior: o que não é visto por Lara/Artur, o é por Artur/Fernanda (respectivamente) e por Teresa/espectador; o não-visto por Lara/Artur, e tampouco visto por Artur/Fernanda, é visto por Teresa/espectador. Por outro lado, o que Teresa/espectador vêem, em parte, só é visto por eles, da mesma forma que o observado por Artur/Fernanda não pode ser visto em sua totalidade por Lara/Artur, mas é visível por Teresa/espectador.
Dessa seqüência de olhares, interessa-nos fazer notar que o ponto de convergência de tantos olhares, em primeira instância, é o próprio corpo, “unidade por ser único, não sendo, por natureza, senão símbolo de uma ausência”[6]. Pode-se, porém, aventar que outro aspecto que os une é, ainda, a forma como cada qual se relaciona com o modus videndi, a forma de ver, dos demais; isso remete a outro texto dos Escritos, “O tempo lógico e asserção de certeza antecipada”[7]:
“O [eu], sujeito da asserção conclusiva, isola-se por uma cadência de tempo lógico do outro, isto é, da relação de reciprocidade. Esse movimento de gênese lógica do [eu] por uma decantação de seu tempo lógico próprio é bem paralelo a seu nascimento psicológico. Da mesma forma que, para efetivamente recordá-lo, o [eu] psicológico destaca-se de um transitivismo especular indeterminado, pela contribuição de uma tendência despertada como ciúme, o [eu] de que se trata aqui define-se pela subjetivação de uma concorrência com o outro na função do tempo lógico. Como tal, ele nos parece dar a forma da lógica essencial (muito do que a chamada forma existencial) do [eu] psicológico.” (p. 208)
A premência que, literalmente, mobiliza os presos para que sejam, cada um, o primeiro a dar a solução do enigma dos discos, levando-os a percorrer os sucessivos passos da seqüência lógica apresentada por Lacan, é vislumbrável também nas personagens do filme: cada qual se põe em determinada relação com esse um-corpo que os mobiliza, sempre assombrados pela possibilidade de que algum outro faça; Artur se apressa a identificar o corpo antes que Lara o envolva em sua teia de burocracia; Fernanda o utiliza para se aproximar de Artur (antes que este se perca em seus devaneios?); Teresa e o espectador se apoderam desse corpo em sua vertente negativa – aquilo que ele não é, não sendo Teresa, que está viva, não sendo identificável, não sendo apreensível em sua totalidade por ninguém como, ao fim, não o é qualquer objeto a…
Outro aspecto merecedor de atenção é a possibilidade de incidência desse corpo-inominado/hiância/fantasia nos três registros, Simbólico, Real e Imaginário, conforme se pode considerar no já referido “Seminário sobre ‘A carta roubada’”: a seqüência de olhares e visões dos personagens não aponta para sua acuidade visual, mas para a maneira de se relacionarem com o corpo, o quanto cada um é capaz, em dado momento, de circular pelos distintos registros no que se refira ao corpo e ao um-corpo. Vejamos:
”mais do que nada do real, que nos creiamos no dever de supor nele, é justamente daquilo que não era que provém o que se repete.” (p.48)
Parece-nos razoável propor que o fato de se tratar de um cadáver inominado, não-identificado – pior, talvez (decerto mais angustiante) não-identificável –, que sempre lhes escapa, induzindo a incessante repetição a que conduz a busca por sua identidade, levada a efeito por Artur, Fernanda, secundariamente, e até fazendo efeito sobre o próprio leitor (posto que, também para ele, o dado real “há um corpo inominado” passa a exigir uma solução; inexistente, leva à repetição ad infinitum da busca do nome). Sequer Lara resiste a tal premência, rendendo-se à busca na cena final.
Siga-se com Lacan:
“Pois o que importa ao ladrão não é apenas que a dita pessoa saiba quem a roubou, mas também que saiba com quem está lidando como ladrão; é que ela o julga capaz de tudo, o que é preciso entender: que ela lhe confere a posição que não está à altura de ninguém realmente assumir, por ser imaginária” (p.37)
Em que pese a especificidade do trecho, referindo-se a elementos do texto de Poe, não nos parece descabido extrapolar tais achados, aplicando-os ao filme. Pode-se atribuir a esse corpo totipotente, polissêmico, qualquer história. Ora, ele se presta a todas elas, inclusive às inverossímeis ou descabidas. A exemplo disso, tem-se a hipótese de Teresa estar morta e aparecer viva ante os olhos de todos ou o uso que o personagem Artur faz desse corpo para infligir ‘mal-estar’ a Fernanda quando esta invade o necrotério, obrigando-a a ter contato com as lesões evidentes no corpo e com as histórias por elas inspiradas a Artur. Até mesmo o personagem Lara, do alto de sua devoção à burocracia, dispõe-se a atribuir um destino ao corpo, ainda que fosse seguir as condutas de praxe, sem buscar qualquer explicação para sua presença. Interessa que todos falam do corpo, se falam por causa dele, interagem em razão do que vêem, imaginariamente.
Ainda com Lacan:
“só se pode dizer que algo falta em seu lugar, à letra, daquilo que pode mudar de lugar, isto é, do simbólico” (p.28)
Dado que existe e que não se dá conhecido, fazendo-se ausência em sua identidade, esse corpo obriga a que se o nomeie, de número no cartão do necrotério a nome – Teresa –, que se busquem explicações para sua existência. Por fim, vale observar quanto há de gozo no uso que cada um faz do corpo, sendo notáveis as cenas em que se manuseiam os corpos e as pessoas – a primeira seqüência (em que se observa uma necropsia), aquela em que Artur aterroriza Fernanda com as lesões existentes no corpo, a forma como Fernanda usa o anonimato do cadáver para se aproximar de Artur, o desespero deste ante a inflexibilidade de Lara com a decisão burocrática do que fazer com o corpo, as respostas que Artur dá ao rapaz que busca explicações sobre seu irmão, a dor na perna da mãe do jovem médico e os cuidados que esta inspira ao filho e ao marido, a reação estarrecida das personagens ante a aparição de Teresa no necrotério para mostrar-se viva. A pulsão escópica em que somos arrastados, espectadores, no périplo desse corpo que se torna um-corpo.
Como também as voltas induzidas nas personagens pela presença desse um-corpo, fez-se algo dessa ordem no presente texto: buscando dar um destino ao vivenciado com o filme, buscou-se, com diversas referências à obra de Lacan, dar-lhe um destino. Com isso, percorreram-se conceitos do autor que julgamos pertinentes aplicar, como se o fez. Todavia, como se deveria esperar, essa obra cinematográfica, como todo objeto – segundo o referencial teórico lacaniano –, não se faz passível de esgotar. Assim, esperamos que, em lugar de encerrar as discussões, este texto induza outras, novas.
[2] Texto apresentado no Debate do Filme CORPO, com a particpação dos Diretores: Rossana Foglia e Rubens Rewald, na CLIPP, outubro de 2008.
[3] Rodrigo Fernandez é psiquiatra e aluno do Curso de Psicanálise da CLIPP.
[4] Lacan, J. Escritos. trad. Vera Ribeiro. Jorge Zahar Ed., 1998. p. 13 e seguintes.
[5] Lacan, J. op.cit. p. 197 e seguintes.
[6] Lacan, J. Escritos, p. 27
[7] Lacan, J. op. cit., p. 208