Maria Helena Barbosa (CLIPP/EBP/AMP)
Nessa homenagem, nesse encontro literário psicanalítico, Lacan deixa claro que sua interpretação não leva à psicologia da autora, que a operação analítica sobre o texto está determinada dentro dos limites do método. Reconhece em Duras uma forma de apreensão do real que dialoga com o saber psicanalítico, em especial através da análise do feminino e do objeto olhar. Cito Lacan: “lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede […] M. Duras revela saber sem mim aquilo que ensino”(LACAN, 2003 [1965], p.200). Que, ao operar pela palavra, tanto a literatura quanto a psicanálise gravitam em torno de um mesmo ponto: “Que a prática da letra converge com o uso do inconsciente” (p.200).
Lacan aborda o termo arrebatamento no sentido de êxtase, fascínio, no qual a alma se sente tomada por uma força superior. É uma operação que permite ao sujeito situar-se em relação ao desejo do Outro. É a relação estrutural do desejo, na constituição do sujeito no campo do Outro, com o objeto que o causa. Laurent dirá que Lacan fará “do arrebatamento da alma, da psique, não um símbolo, mas uma operação lógica, subjetiva e temporal que permite situar as relações do sujeito com o corpo” (LAURENT, 2000, p.17).
Ele se vale da obra de Duras para abordar a função do olhar e explorar duas formas fundamentais da operação lógica da constituição subjetiva, os dois movimentos que se enlaçam em Lol V. Stein, enquanto arrebatada e enquanto arrebatadora.
Pela lógica do fantasma
Primeiro Tempo: a construção do fantasma, o acontecimento. Cito Lacan:
“A cena de que o romance inteiro não passa de uma rememoração é, propriamente o arrebatamento de dois numa dança que os solda, sob o olhar de Lol, terceira, com todo baile, sofrendo aí o rapto de seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente” (LACAN, 2003 [1965], p.199).
Absolutamente sem reação, arrebatada, fica num canto do salão, olhando esta cena se desenrolar até ficar extremamente alterada; desmaia quando vê o casal ir embora, juntos, sem que ela possa fazer nada. Lacan reconhece nesta primeira cena, neste ternário, a estrutura do fantasma.

Segundo Tempo: A fixação no fantasma, uma articulação do sujeito ao olhar.
Depois do episódio do baile, Lol entra em prostração, isola-se silenciosa e abatida. Como apresenta M. Duras, pela voz da narrativa de Jacques Hold, Lol passa a penetrar naquele baile todos os dias; todas as tardes repete, em devaneio, a cena fantasmática onde “vê seu noivo despindo outra mulher que não é Lol (…), e Lol espera, em vão, que ele a retome, com seu corpo doente da outra ela grita, espera em vão, grita em vão”(?). Laurent dirá que é um fantasma onde um vestido vai funcionar como “suporte do lugar do sujeito”.
Terceiro Tempo: a dinâmica do fantasma, a tomada de lugar.
Lol se dedicará a ficar espreitando um casal por repetidas vezes. Um casal de amantes composto por um homem, Jacques Hold, amante de carteirinha e, uma mulher, Tatiana, amiga íntima de antes do baile e que estava presente no drama vivido. Esta segunda cena é um segundo ternário.

Pela topologia do nó
Em 1965, ano em que fez essa homenagem, Lacan proferia seus seminários 12 e 13, Problemas cruciais para a psicanálise e O objeto da psicanálise. Salvo engano, esse é um dos primeiros textos onde Lacan introduz a topologia para formalizar sua transmissão.
Ele nos convida a olhar mais de perto a constituição do segundo ternário, afirmando que “Não é o acontecimento, mas um nó que se reata aí” (LACAN, 2003 [1965], p.199). Em tal forma não existe repetição.
Por um lado, o romance deixa claro a posição ativa de Lol. É Lol quem arranja o ser-a-três e o que acontece a realiza. Lacan nos ensina que existe aí um gozo que se localiza. É um nó que se refaz.
Por outro lado, a reedição do nó se introduz num outro ternário que tem uma temporalidade que lhe é própria. Se introduz no ternário que é promovido por Jacques Hold, o homem da operação. No nó que se refaz ele representa o homem que passa o tempo a ver e ser visto. É ele que ocupa o lugar do sujeito, o lugar da angústia.
Lol está no lugar da vontade. Quando J. Hold pergunta o que ela quer, ela lhe responde: “Quero.”. Como escreve Duras: “Despótica, irresistivelmente, ela quer”. Ela quer e J. Hold fará o que ela quer.
Jacques Hold por sua vez, no clímax do segundo ternário é quem é tomado de violenta angústia quando vê Lol no campo de centeio, em frente à janela do quarto de hotel onde vai se deitar com sua amante, Tatiana. Frente à angústia provocada por aquele olhar fica extremamente desnorteado e só consegue se conter quando restitui uma imagem sob aquele olhar; ele se tranquiliza quando imagina que ela também devia vê-lo ali em pé, na janela. Finalmente, J. Hold passa ao jogo de dar-se a ver e de mostrar Tatiana para Lol. É ele quem promove e apresenta o olhar.

No triângulo do lado esquerdo do esquema acima temos o ser-a-três que é Lol V. Stein, numa triangulação que tem por termos;
– o corpo de Lol lá no campo de centeio;
– Jacques Hold que deve dar-se a ver e mostrar o olhar;
– Tatiana, um duplo de Lol e objeto da atenção de J. Hold às tardes no Hotel des Bois.
Aí está Lol num equilíbrio precário para a tomada deste ser-a-três que se rompe levando-a à loucura como conta Duras a Lacan. Lol enlouquece quando J. Hold ao invés de ficar onde deveria, resolve se aproximar mais de Lol. Ele quis compreendê-la e “Ser compreendida não convém a Lol, que não é salva do arrebatamento” (LACAN, 2003 [1965]), p.203).
Do olhar, Lacan dirá que ele está por toda parte do romance. Lacan utiliza a topologia, mais precisamente a banda de Moebius, para nos transmitir a operação do olhar. Toma a locução “centro dos olhares” do acontecimento no baile para desenvolver o espaço topológico em que opera a psicanálise.
Cito Lacan:
“O centro não é a mesma coisa em todas as superfícies. Único num plano, por toda parte numa esfera, numa superfície mais complexa ele pode dar um nó esquisito. Esse é o nosso. Pois você sente que se trata de um envoltório que já não tem dentro nem fora, e que, na costura de seu centro, todos os olhares convergem para o seu, eles são o seu que os satura e que, para sempre, Lol, você o reivindicará a todos os passantes” ((LACAN, 2003 [1965]), p.201).
Dirá que o olhar surge em estado de objeto puro.
Lacan ainda constrói um terceiro ternário tendo o arrebatamento de Lol V. Stein como objeto a autora, M. Duras, e onde introduz o seu próprio arrebatamento que, como disse, é decididamente subjetivo.
Tanto o livro de Duras, como o texto de Lacan, são objetos de debates contínuos no meio psicanalítico, de tal forma que podemos construir um quarto ternário que também nos inclui, uma vez que somos arrebatados pela transmissão de Lacan.
Referências bibliográficas:
LACAN, J. (2003 [1965]) Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. p.200.
LAURENT, E. (2000) Um sofisme de L’amour courtois. In: Revue da Psychanalyse de la Cause Freudienne, nº46, p.17.
LAURENT, E. Intervenção no curso “Le us du laps” de Miller, J-A., 19ª aula.

