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I Conversação dos Institutos – Florianópolis – abril 2009

 


O fantasma
João Loureiro, 2008.

 

E então as pessoas se conformam e vivemos num mundo de sombras, uma 
“Cidade de fantasmas”.
J.-A. Miller
Effet retour sur la psychose ordinaire
Quarto 94-95, 2009.

 

 

Trabalho da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise – Clipp, enviado para a Conversação dos Institutos do Campo freudiano no Brasil, durante o VIII Congresso da EBP, Florianópolis, abril, 2009.
A trajetória da Clipp pari passu o debate sobre a psicose ordinária

Impasses cada vez mais freqüentes na direção do tratamento e dificuldades crescentes no manejo da transferência, amiudando-se os fracassos na clínica, colocaram a Clipp diante do imperativo de algo fazer. O vasto campo de investigação da psicose ordinária sobreveio quase de modo impositivo, e, tal qual a própria invenção do termo psicose ordinária por Jacques-Alain Miller, après-coup.
Algumas perguntas elementares têm norteado nossa pesquisa: como definir psicose ordinária? De que forma usar essa nova categoria ajudaria na clínica da atualidade? A noção de psicose ordinária se sustenta e, se assim for, como diferenciá-la do conceito de psicose?
Nesse contexto, a Clipp tem empreendido um verdadeiro esquadrinhamento, perscrutando o conceito com rigor e de forma minuciosa, através do estudo teórico e clínico, da interlocução com a psiquiatria, do cotejamento de opiniões, do debate de idéias, do levantamento bibliográfico.
Este trabalho fala do percurso da Clipp nessa pesquisa, em pleno andamento, e esboça um panorama dessa trajetória, procurando destacar os principais pontos já trabalhados e os ainda por investigar.

A produção da Clipp
A pesquisa se iniciou em 2001 com um caso da Apresentação de Pacientes. A dúvida diagnóstica no hospital era: seria caso de borderline, de psicose ou de histeria? Estudar o conceito de borderline tornou-se meta da Clínica do Instituto de Psicanálise, cujo produto foram dois textos: Do açougue para casa: um caso de Apresentação de Pacientes O borderline – a Psiquiatria e a Psicanálise.
Em 2004, foi realizada a tradução do livro La Psychose Ordinaire , elaborada pela Clipp e pelo Colégio Franco-Brasileiro. Em 2005 realizou-se a V Jornada da Clipp A loucura hoje e apresentaram-se trabalhos sobre o tema no II Encontro Americano, em Buenos Aires, e na Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – SP. Em 2007, seguindo a pesquisa, a Clipp apresentou trabalhos no III Encontro Americano, em Belo Horizonte. Em 2008 organizou sua XI Jornada, A Psicose Ordinária. Na ocasião, foram enviadas questões para colegas da EBP. Ainda neste ano, a Clipp apresentou trabalhos no XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, no Rio de Janeiro. A Clipp também publicou trabalhos em revistas, livros e sites.O tema Psicose Ordinária está presente nas discussões dos Núcleos de Pesquisa, da Seção Clínica e no programa do Curso de Formação.

Breve percurso teórico
O impossível de dizer, o inominável da satisfação libidinal que arrebata o corpo sem explicação, o fora do simbólico, o impossível da relação sexual, no fundo é disso que se trata também nas psicoses ordinárias.
Na neurose, um significante – o Nome do Pai – tenta decifrar o desejo da mãe. Tem algum êxito ao promover um ponto de basta no idílio pulsional e instaurar, através do discurso, uma conexão com o universal. Lacan concebe, no início, a psicose como a falta do Nome-do-Pai (Po), sua foraclusão. Há uma descrença no simbólico e o psicótico não se serve da medida universal dada pela significação fálica (Fo). Surgem fenômenos de linguagem: delírios, alucinações, automatismo mental, etc. Aqui é possível diagnosticar com clareza a psicose. Mais tarde, Lacan fala em outras foraclusõespara indicar o que, apesar do Nome-do-Pai e antes de sua função, não encontra, nos falantes, registro no simbólico. Falha. Seria a foraclusão generalizada. O sinthoma se inscreveria no lugar da falha, como forma de cada sujeito se haver com a hiância do Outro. Tal ou qual artifício funciona como Nome-do-Pai; não o é de fato, mas tem suas propriedades. Miller, em Quarto, fala de um make-believe do Nome-do-Pai, o compensatory make-believe (CMB), fazer-crer compensatório. Retoma as razões que o levaram a criar o sintagmapsicose ordinária. Havia urgência em sair da clínica binária, sustentada na divisão psicose ou neurose. Fenômenos clínicos levaram a essa definição a partir dos casos apresentados na Convenção de Antibes.Antes, a Conversação de Arcachondiscutiu casos raros e inclassificáveis. Em Antibes e em Arcachon, o mote eram casos resistentes à classificação estrutural, cujos fenômenos diferiam daqueles das psicoses extraordinárias. Fenômenos de desligamento do laço social criam uma barreira entre o sujeito e o mundo; perturbações da satisfação libidinal tomam o corpo e levam a inventar formas artificiais de reapropriação; experiência do vazio, como na neurose, mas não dialetizável; identificação real ao objetoa como dejeto, são índices de psicose ordinária.Haveria construções diversas do Nome-do-Pai que fariam amarração, evitando os sintomas da psicose. Segundo Miller, em La Psychose Ordinaire, se “fundem, numa espécie de média, as psicoses compensadas, medicadas, suplementadas, não desencadeadas, psicose em terapia, psicose em análise, psicose que evolui, psicose sinthomatizada”.Enfim, deixaram de ser casos raros. O efeito teórico da psicose ordinária, fala Miller em Quarto, é uma generalização do conceito de psicose, já esboçada por Lacan. O Nome-do-Pai, diz Miller, não existe, é um predicado. Apaga-se a diferença entre neurose e psicose, conforme à frase “todo mundo é louco, quer dizer, delirante”, retomada em seu Curso 2007/2008. Conceito útil na clínica, pois “ser analista é saber que seu próprio mundo, sua própria fantasia, sua própria maneira de fazer sentido é delirante. É a razão pela qual se tenta abandonar essa maneira de fazer sentido, precisamente para perceber o delírio próprio do paciente”.
Na clínica se dirimem as dúvidas quanto ao proveito da categoria psicose ordinária. A noção deneotransferência, amoedada em Antibes, traz novos rumos: tipo especial de transferência, onde há mais gozo e menos verdade; mais sinthoma e menos sintoma; mais analista parceiro-sintoma e menos analista parceiro-saber.
Ao analista cabe traduzir a língua particular falada pelo sujeito (alíngua), e saber que a neotransferência se sustenta no imaginário e por isso o sujeito pode de seu corpo se servir. Torna-se uma massa de modelar, dócil, que pode “tomar o significante bruto e transformá-lo em um S1 civilizado”, apoiando-se no sintoma. Sua função é limitar o gozo, dando-lhe um ponto de estofo. “Sejamos objetos leves e tolerantes, muito masoquistas, para que o uso feito de nós não seja normalizado, nem previsível”.

Repercussões
Os efeitos dessa investigação na Clipp revelam-se nos casos atendidos na Seção Clínica e nas Apresentações de Pacientes. Destacamos três casos que ilustram o até aqui descrito.
Uma mulher , na Apresentação de Pacientes, queixa-se de manias: compulsão a ter de desfazer a seqüência do que fez durante o dia. Isso ganha mais força quando encontra no discurso da ciência uma nomeação, TOC. Descreve outros sintomas como nervosismo, rebeldia, uso de drogas, prostituição, três tentativas de suicídio que levaram a três internações. Na fala excessiva, um significante se destaca e a representa – “barraqueira”, pontuado pela analista, que localiza como fixação de gozo a rebeldia e inflexibilidade diante de qualquer limite, mantendo o sujeito sempre no mesmo lugar. Seguem-se pontuações de incidência sobre o gozo – a repetição da inflexibilidade, a recusa em aceitar o limite, as atuações. Algo do sujeito é tocado.
Desde a Seção Clínica da Clipp, outra paciente é atendida por uma analista da instituição. Relata bater na mãe, no cachorro, chutar a porta, socar a parede. Bato porque bato, era a única resposta. Logo vem forte transferência erotomaníaca, anunciando dificuldades no tratamento. Masturbação compulsiva no banheiro do consultório, telefonemas infindáveis, exigência de atendimento a qualquer hora, recusa a efetuar o pagamento. Produz-se na Clipp a urgência de estudar alternativas de tratamento que não o simples não dá. Propôs-se uma ação heterodoxa: ao invés de apenas uma analista, três, e ainda uma quarta, para a mãe. As analistas se sucederiam semanalmente. À analista primeira mantém-se a transferência erótica; à outra, se afigura algo da admiração e, à terceira, uma transferência negativa. A transferência tornou-se suportável. Após alguns meses, o excesso de gozo volta a criar problemas. Com a analista a quem dirigiu a negatividade, fica iminente a violência física e ela é retirada do quadro; às outras duas demandava mais e mais; a cada tentativa de limite, se interpunham ameaças de violência. Não foi possível prosseguir. Mas a paciente se mantém conectada à Clipp, voltando sempre a demandar atendimento. Teria se produzido uma transferência imaginária ao significante Clipp?
Paciente da Seção Clínica com quadro de anorexia nervosa. Em terapia anterior consegue alguma estabilidade com controle da comida e práticas de atividade física. A análise atual começa quando a paciente perde referências simbólicas – emprego e curso na universidade. Colada na mãe, cuja demanda é mortífera. A análise segue a direção de separar e mudar a posição subjetiva. O sujeito não pode responder pelo simbólico. Produz-se episódio de corpo – perda de cálcio e potássio, sem qualquer causa identificada. UTI.
A seguir, a resposta é peculiar: obesidade. Ao contrário do “comer nada”, passa a ter compulsão alimentar. Apesar das críticas da mãe, do corpo disforme, mantém-se bem. Da anorexia à obesidade, a saída desse sujeito é o corpo. Na impossibilidade de fazer-se um nome, faz-se um corpo.
Nestes casos – e em tantos outros – afigura-se a preocupação com o exercício ético da psicanálise, pois colocam o analista diante da necessidade de questionar certos referenciais clássicos da psicanálise. A noção de psicose ordinária permite refletir sobre os desafios atuais da clínica. Transformar esse conceito num quadro nosológico rígido é um risco que corremos, o que seria ir à contramão de sua própria origem.
Daí porque a Clipp tem-se voltado à investigação constante desse Campo.

Este trabalho foi discutido e elaborado em três reuniões sucessivas da Clipp, com a participação de Carmen Silvia Cervelatti, Daniela de Camargo Barros Affonso, Edson Gusella Jr., Eliane Costa Dias, Kátia Ribeiro, Maria do Carmo Dias Batista, Maria Noemi de Araújo, Marizilda Paulino, Niraldo de Oliveira Santos, Perpétua Medrado Gonçalves e Sandra Grostein.
Reunião dos textos referenciais: Perpétua Medrado Gonçalves.
Roteiro e metodologia: Sandra Grostein e Maria Noemi de Araújo.
Redação: Daniela de Camargo Barros Affonso e Maria do Carmo Dias Batista.

Trabalho de Sandra Grostein. Detalhes nota n. 5.

Trabalho de Carmen Silvia Cervelatti. Detalhes nota n. 5.

MILLER, J.-A.(org.) La Psychose Ordinaire: La Convention d’Antibes. Paris, Agalma, Le Seuil1999.Título do livro em português:“Psicose Comum, uma coletânea de textos de autores franceses”. Tradução autorizada por JAM. Aguarda publicação.

Sintomas Histéricos, Maria do Carmo Dias Batista (Site da Clipp e Biblioteca EBP, textos on-line); O amor louco de uma mãe, Éric Laurent, comentário de Sandra Grostein (Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise nº 36, maio de 2003); Do açougue para casa: Um caso de Apresentação de Pacientes, Sandra Grostein (Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n° 38, dez de 2003); O borderline – A Psiquiatria e a Psicanálise, Carmen Silvia Cervelatti (Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n° 43, maio de 2005); Homem dos Lobos – um nome para Serguei,  Carmen Silvia Cervelatti (Boletim Um por Um n° 29); A lição de psicanálise, Perpétua Medrado Gonçalves (site da Clipp); Artifícios do pai. Caso clínico: do ‘acerto de contas’ ao ‘em boa conta’, Sandra Grostein (Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n° 47, dezembro de 2006); Suplência na psicose ordinária, Sandra Grostein, Rômulo Ferreira da Silva, Glória Maron (livro Felicidade e Sintoma: Ensaios para uma Psicanálise no século XXI org. Maria Josefina Fuentes e Marcelo Veras – Rio de Janeiro, EBP; Salvador: Corrupio, 2008).

LACAN, J.De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 578.

LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p.117.

MILLER, J.-A. Effet retour sur la psychose ordinaire, Quarto, Belgique, 94/95, ACF –  École de la Cause freudienne, 2009.

MILLER, J-A. Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica A conversação de Arcachon, São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.

Ibid. p. 45-46.

MILLER, J.-A., op. cit. , 1999.

GROSTEIN, S., FERREIRA DA SILVA, R., MARON, G., Suplência na psicose ordinária, In. Felicidade e Sintoma: Ensaios para uma Psicanálise no século XXI, org. Maria Josefina Fuentes e Marcelo Veras – Rio de Janeiro: EBP; Salvador: Corrupio, 2008.

MILLER, J.-A. Ainterpretação da psicanálise,Curso de Orientação Lacaniana III, 10, 2007-2008. Site EBP

MILLER, J.-A., op. cit. 2009.

MILLER, J.-A., op. cit. 1999, p. 361.

MILLER, J.-A., op. cit. p. 343.

Caso apresentado no XVII Encontro Brasileiro do Campo freudiano. Relatora: Daniela de C. B. Affonso.

Caso apresentado no III Encontro Americano do Campo freudiano. Relatora: Kátia Ribeiro.

Caso apresentado no III Encontro Americano do Campo freudiano. Relatora: Eliane Costa Dias.