Emanuelle Garmes (CLIPP)
garmes@hotmail.com

 

Há algo de perturbador e, ao mesmo tempo, fascinante no fenômeno das chamadas mães reborn: mulheres adultas que adotam bonecos ultrarrealistas como se fossem filhos. Eles são confeccionados em vinil ou silicone, com pele macia, veias aparentes, cabelo implantado fio a fio e peso semelhante ao de um bebê real: são alimentados, vestidos, embalados, passeiam em carrinhos  e têm, muitas vezes, suas rotinas exibidas em redes sociais.

O reborn surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1990, como vertente da arte do realismo, mas logo ultrapassou o status de peça de colecionador para se tornar objeto de forte investimento afetivo. Hoje, há um mercado global: um modelo básico custa cerca de US$ 250, enquanto versões em silicone podem chegar a US$ 8.000 (Abbate, 2025). No TikTok, hashtags como #rebornbaby e #rebornmom somam mais de 5 bilhões de visualizações; no Brasil, o interesse explodiu em 2024 e 2025, com vídeos virais de mamães levando seus reborns ao shopping ou a consultas médicas simuladas, acumulando milhões de views (Maraccini, 2025).

Essa visibilidade desperta curiosidade e reações polarizadas. De um lado, o fascínio; de outro, o estranhamento e a crítica, frequentemente atravessados por um preconceito antigo: a associação quase imediata de comportamentos femininos fora da norma à loucura, ecoando séculos de patologização de experiências que não se encaixam no imaginário social do feminino adequado.

É essencial fazer uma distinção: possuir um bebê reborn não implica, automaticamente, considerar-se uma mãe reborn. Muitos desses objetos circulam no campo do colecionismo, da arte realista, da fotografia e do entretenimento, permanecendo no registro do lúdico ou do estético. A problemática emerge quando a proprietária passa a se representar como mãe daquele objeto, assumindo essa posição no plano identitário. É nesse deslocamento — do brincar, para o campo do ser — que a experiência ganha densidade clínica e fenomenológica, com repercussões que podem ou não fechar o horizonte existencial gerando adoecimento.  Aí, a psiquiatria pode trazer sua contribuição.

O olhar do DSM-5: potencial e limites

Na classificação psiquiátrica descritiva do DSM-5, não há diagnóstico específico para a relação com bebês reborn. O fenômeno é considerado clinicamente relevante se houver:

  • Alteração do juízo de realidade (por exemplo, crença inabalável de que o boneco é um bebê vivo):
  • Prejuízo funcional significativo (comprometendo trabalho, relações sociais ou autocuidado);
  • Sofrimento clinicamente relevante diretamente relacionado à prática de usar o bebê reborn.

Em casos raros que se enquadram nessas condições, o fenômeno pode aparecer como sintoma em transtornos psicóticos, luto complicado ou forçadamente ser incluído em transtornos de personalidade dependente e borderline como muito se aventou nas mídias ultimamente. E nada muito além poderia advir desse modelo diagnóstico, desde que opera de modo binário: ou há transtorno psiquiátrico ou o fenômeno é considerado não clínico. No entanto, a ausência de patologia diagnóstica classificável pelo DSM não equivale à ausência de relevância clínica. É aqui que a psiquiatria fenomenológica estrutural pode ampliar o olhar como proposto a seguir.

A psiquiatria fenomenológica-estrutural como via de compreensão

A fenomenologia estrutural, tal como desenvolvida por Minkowski, Binswanger e aprofundada por autores contemporâneos, propõe compreender o fenômeno a partir de sua inserção no mundo vivido (Lebenswelt), articulando-o às estruturas fundamentais da experiência. Mais do que descrever sintomas, essa abordagem envolve investigar, escutar e observar para apreender como o paciente se relaciona com o mundo, consigo mesmo e com os outros. Os sintomas, nesse contexto, não são apenas sinais de disfunção ausente ou presente, mas expressões de uma tentativa — consciente ou não — de reorganizar a vida psíquica.

Podemos pensar, por exemplo, em uma mulher em período de crise existencial, no qual se instala perda de sentido, esvaziamento de projetos e/ou ruptura de vínculos significativos. Nessas circunstâncias, a orientação fundamental da pessoa — seu modo de se dirigir ao mundo, de experimentar o tempo, o espaço, o corpo e as relações — pode sofrer alterações profundas, reconfigurando todo o campo da experiência. É nesse espaço que um bebê reborn pode surgir como um núcleo de sentido transitoriamente, não por seu valor material ou estético, mas como objeto capaz de concentrar afeto, cuidado e função simbólica de filho. Explico a seguir: 

  • restabelecimento de um eixo afetivo: a relação com o reborn preenche lacunas deixadas por perdas reais ou simbólicas.
  • reorganização do tempo vivido: a rotina de cuidados devolve um sentido de estrutura e previsibilidade.
  • reconstrução identitária: assumir-se como mãe (mesmo de um objeto) oferece uma narrativa coerente em um momento em que a identidade pode estar fragilizada.
  • mediação com o mundo: a presença do reborn cria novas formas de se colocar socialmente, seja como gesto transgressor, seja como prática inserida em uma comunidade que a valida e estimula.

Assim, longe de uma mera “excentricidade” ou modismo, o bebê reborn pode representar uma resposta à urgência psíquica de encontrar um foco organizador da experiência – ainda que esse foco seja um bebê que nunca nasceu, mas que, no mundo vivido da mãe reborn pode existir plenamente.

Obviamente esse recurso, se vivido de forma inflexível e cristalizada, pode culminar numa restrição do horizonte de experiências e no adoecimento, propriamente dito. Afinal, um reborn mobiliza todo um repertório de gestos – segurar, ninar, trocar, mas sem a resposta de um corpo vivo. Ele não chora, não adoece, não cresce, não se manifesta como sujeito independente que oferece resistência. A alteridade, se amplamente substituída por um simulacro dócil que pode ser guardado na gaveta a qualquer momento, pode afastar da vivência o imprevisível que perturba, transforma e impõe fluxo ao movimento existencial.

A despeito do estranhamento evitemos  extremos. Nem toda mãe reborn está louca, nem toda adepta é simplesmente uma brincalhona ingênua tomada pelos artigos virais ofertados pelo mercado.  Cabe buscar discernir quando abraçar esse consolo de silicone é recurso suficiente e quando ele sinaliza que precisamos estender a mão para a mamãe por trás do bebê.

 

Referências Bibliográficas:

ABBATE, G. Reborn Dolls: Creepy to Some, Therapeutic Aid to Process Grief to Others. Recuperado em 11 de setembro de 2025.

<https://lavocedinewyork.com/en/lifestyles/2025/07/25/reborn-dolls-creepy-to-some-therapeutic-aid-to-process-grief-to-others>.

MARACCINI, G. Bebês reborn: entenda o que são e por que chamam atenção. Recuperado em 11 de setembro de 2025.

<https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/bebes-reborn-entenda-o-que-sao-e-por-que-chamam-atencao>.