Carlos Ferraz Batista (Clipp)
Esta necessidade de autopunição, este enorme sentimento de culpa, também pode ser lida nos atos das Papin, como na genuflexão[1] final de Christine (LACAN, 1933, p.390).
O brutal assassinato da esposa e da filha dos patrões por Christine e Léa Papin em 1933 permanece um enigma sombrio na criminologia.
Esta análise, tomando como principal referência a tese de Lacan Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade (1933), objetiva refletir sobre a subjetividade do ato criminal. Abordaremos a dinâmica psíquica das irmãs explorando sua acentuada relação simbiótica e a complexa articulação entre pulsão e desejo de autopunição, um conceito lacaniano central que ilumina a busca de contenção do ato violento, por meio de uma sanção externa.
Inicialmente descritas como criadas-modelo, as irmãs Papin logo revelaram-se criadas-mistério. Essa dualidade sugere uma opacidade em sua subjetividade, uma possível cisão entre a fachada de submissão e um turbulento mundo interno. A intrincada dinâmica psíquica que as movia desafia explicações simplistas de causalidade.
O crime das irmãs Papin pode ser compreendido como uma passagem ao ato: na passagem ao ato o sujeito se ausenta da cena, sua posição se assemelha a de um objeto morto; após a ação sobrevém uma vacuidade, um vazio significante, que marca um encontro abrupto com o real, que lacera a ordem simbólica preexistente.
O paroxismo do furor e da violência infligida aos corpos das vítimas – a extração dos olhos, os espancamentos, a mutilação sexual – transcendem a lógica de uma vingança racional, revelando uma irrupção da pulsão.
A simbiose entre as irmãs, marcada por forte similaridade e pela sugestão de homossexualidade, aponta para uma dificuldade na constituição de identidades separadas e na relação com o Outro. Em relações simbióticas, a fronteira entre o eu e o outro se esvai, o que torna a angústia da separação avassaladora. Nesse contexto, a ideia de atingir a si mesmo e seu duplo pode ser interpretada como uma tentativa desesperada, ainda que destrutiva, de demarcar um limite no campo do Outro materno ou da figura de autoridade. Por conseguinte, a agressão das irmãs Papin contra as patroas constituiu um esforço extremo para estabelecer um limite — uma suplência à castração, em um cenário onde as patroas atuavam como o duplo especular das próprias irmãs.
O desenvolvimento de um discurso delirante após a prisão, especialmente em Christine isolada da irmã, ratifica a leitura de uma estrutura psicótica. As alucinações aterradoras e a tentativa de automutilação ocular manifestam uma falha na função simbólica do Nome-do-Pai, essencial para a inscrição do sujeito na ordem da linguagem e da lei. A agitação, as exibições eróticas, os sintomas de melancolia, a recusa alimentar e as auto acusações sinalizam uma desestabilização psíquica. A fala de Christine sobre o estado das patroas como se ainda estivessem vivas, revela uma relação perturbada com a realidade, um indício de uma construção delirante onde as fronteiras entre vida e morte, presença e ausência, se tornam indistintas.
A condição de inimputabilidade de Christine, fundamentada em seu discurso delirante, não busca justificar o crime, mas sim compreendê-lo à luz das estruturas psíquicas subjacentes. A relevância do social como determinante do crime dialoga com a perspectiva lacaniana de que o sujeito se constitui na linguagem e no campo do Outro. As manutenções das tensões sociais, ou a ruptura dessas tensões, modulam a personalidade do sujeito e podem precipitar desestabilizações psíquicas.
A hipótese de Lacan sobre a trajetória de sofrimento das irmãs até o ato criminoso encontra eco na seguinte citação:
A história do sujeito, tal como ela se desenrola na dialética imaginária das relações objetais e na integração simbólica das identificações, comporta momentos de fixação, de estagnação e mesmo de regressão, que podem fragilizar a estrutura do eu e predispor a descompensações ulteriores (LACAN, 1933, p.390).
Nesse sentido, a história de vida das irmãs Papin, marcada por possíveis privações afetivas, pela dinâmica de servidão e pela relação simbiótica, pode ter criado um terreno fértil para fixações e desagregações subjetivas.
O crime, nessa perspectiva, emerge como uma tentativa desesperada de romper um nó psíquico, uma metáfora da morte, revelando um sofrimento psíquico avassalador.
A genuflexão final de Christine, mencionada na epígrafe, pode ser interpretada como um reconhecimento inconsciente de sua culpa e de seu desejo de punição, selando espantosamente o ciclo da violência e da expiação?
Desse modo, mesmo distante do contexto social e cultural das irmãs Papin, a lógica da passagem ao ato como irrupção do gozo e a falha na mediação simbólica, persistem.
Na contemporaneidade, com suas inéditas formas de expressão do sofrimento, torna-se ainda mais premente aprofundar a reflexão sobre os tempos atuais e as múltiplas nuances da dor humana, por vezes extravasada em atos que desafiam a compreensão e escancaram a complexa relação entre sofrimento psíquico e a violência.

