Claudio Ivan Bezerra (CLIPP)

Há uma questão epistêmica sobre o gozo do Outro para além do sintoma, do fantasma e da iminência do real. Ao mesmo tempo que sua repetição desafia no dia a dia da clínica, a espacialização do gozo do Outro parece indicar um norte para a direção do tratamento e o desvelamento pelo encontro com o traumático.

O recorte desta pesquisa privilegia o gozo do Outro como propriedade topológica, a fim de esclarecer alguns conceitos analíticos e possibilitar uma ênfase na escuta. Ao final do seu ensino, Lacan diz que o gozo não serve para nada,[1] colocando-o como produto do imperativo superegoico. O mundo atual tão permeado pelos excessos dos gozos nos dá prova cabal disto!

Entretanto, o que faz o analista com o gozo do Outro? Qual a função deste gozo no tratamento analítico? Aqui apresento uma pesquisa feita em cartel fundamentada na construção epistêmica e no pragmatismo lacaniano.

O espaço e a estrutura

Na clínica da perversão [2], há referências precisas sobre a natureza deste gozo e a localização do Outro. No Seminário XVI o gozo vem ser aquilo que se institui por sua evacuação do campo do Outro [3] – é parassexuado e está fora da linguagem [4]. Seu acesso se dá através do objeto a, de natureza êxtima, que vem funcionar como equivalente do gozo dentro de uma estrutura topológica.

O perverso é aquele que se consagra a tampar o buraco do Outro. A pulsão escópica tem natureza ambígua, mas conseguimos entender a espacialização do objeto êxtimo, uma vez que o olhar perdido é reencontrado na conflagração da vergonha [5]. Assim, no voyerismo cabe localizar onde está o sujeito e onde está o objeto. Se o voyer interroga no Outro aquilo que ele não pode ver [6], em contraposição seu tombo maior seria ser surpreendido pela captura da fenda. No exibicionista há o zelo pelo gozo do Outro que se torna possível através produção de uma miragem que faz surgir o olhar no campo do Outro. Em ambas as situações, há o objeto a funcionando como captura de gozo. Em termos freudiano, é o fechamento do circuito pulsional através de si mesmo com o alvo atingido.

No Seminário XIV [7], a perversão só adquire seu valor ao se articular com o ato sexual, e a questão é saber onde o sujeito perverso encontra o seu gozo. O masoquista visa o gozo do Outro [8] portanto, está refugiado no gozo do ato sexual, enquanto o sádico visa em última instância buscar a angústia do Outro [9] colocando-se no lugar de objeto. Lacan ressalta que, embora o sadismo e o masoquismo operem da mesma forma, o sádico é servo da necessidade de colocar sob jugo, o gozo que visa como sendo o sujeito [10].

Para passarmos à clínica da neurose é preciso tomar a questão do masoquismo como ponto de partida. A saída pela neurose não é clara, já que o Nome do Pai não é suficiente para desalojar o gozo do Outro[11]. Em termos teóricos, há uma impossibilidade de conceber o que se passa com o supereu, o que nos faz articular o objeto a como suporte significante na instauração do campo do Outro.

Lacan diz que neurótico é aquele que se recusa encarniçadamente a sacrificar sua castração ao gozo do Outro [12]. E com este impasse, persistirá até o final de análise, mas o sujeito servir-se-á deste gozo. De que forma?

No Seminário X [13], a angústia do pesadelo é experimentada como o gozo do Outro e compara o correlato à presença de demônios que à noite vêm sequestrar a energia vital. Trata-se dos íncubos e súcubos que comprimem o peito e com seu peso esmagam com seu gozo alheio. O mito está tratado na obra pré-romântica O pesadelo [14] de Henry Fuseli, que traz uma mulher prisioneira do seu pesadelo, tendo sobre o seu corpo o peso de um íncubo [15] .

Nó borromeano

Com o advento do último ensino a questão se complica. Como interpretar o gozo do Outro sobre a perspectiva do Um? No Seminário XIV [16] ,Lacan diz que o lugar do Outro está no próprio corpo, pois é ali que, na origem, se inscreve a marca como significante. Na medida que é o efeito da introdução do sujeito, feito da significância, o corpo está colocado pela relação de alienação que produz uma marca que o privilegia. A travessia do fantasma revelaria o trauma, a cena de gozo – esta que supostamente seria o gozo do Outro [17]. E qual solução encontrada para este gozo?

No Seminário XXIII há uma revisão do Esquema RSI que apresenta uma mudança na escrita do gozo do Outro. Lacan diz que não há Outro do Outro e, portanto, não haveria o gozo do Outro [18]. Contudo, será preciso fazer algo com o simbólico que está sozinho, junto do imaginário ali presente. Lacan propõe uma solução nodal, uma emenda entre o imaginário e o saber inconsciente, estratégia que servirá para dar um sentido ao longo da construção do sintoma analítico [19]. Ele nos adverte que ao fazermos esta emenda, fazemos automaticamente outra, entre o simbólico e o real.

 

*Cartel: Topologia Lacaniana (Apresentado nas Jornadas de Cartel da EBP – 2025).

 

[1] LACAN. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. In: Do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 11.
[2] LACAN. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. In: Clínica da Perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 248.
[3] Idem, p.240.
[4] LACAN. A Terceira. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2022, p 56.
[5] LACAN. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In: A pulsão parcial e o seu destino. Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro, 2008. p. 179.
[6] LACAN. O Seminário, livro 10: a angústia. In: Além da angústia de castração. Rio de JaneiroL Jorge Zahar Ed, 2005, p 60.
[7] LACAN. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma. In: O sádico e o masoquista. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2024, p. 328.
[8] LACAN. O Seminário, livro 10: a angústia. In: Aforismos sobre o amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 195.
[9] LACAN. O Seminário, livro 10: a angústia. In: A mulher, mais verdadeira e mais real. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 211.
[10] LACAN. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma. In: O sádico e o masoquista. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2024, p. 336.
[11] SALAMONE. Luis. Topología del amor. Olivos: Gramas Ediciones, 2021, p. 88.
[12] LACAN. Escritos, In: Subversão do sujeito e dialética do desejo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998, p.841.
[13] LACAN. O Seminário, livro 10: A angústia. In: O que engana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 73.
[14] FUSELI, Henry. O pesadelo. 1781. Óleo sobre tela, 101,6 x 127 cm. Instituto de Artes de Detroit, EUA.
[15] FARTHING, Stephen, Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, p. 266
[16] LACAN. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. In: Só existe gozo do corpo. Rio de Janeiro: Zahar, 2024, p. 293
[17] KORETZKY. Carolina. O despertar: Dormir, sonhar, acordar talvez. Belo Horizonte: Autêntica, 2023, p. 147
[18] LACAN. O Seminário, livro 20: O sinthoma. In: Do nó como suporte do sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 54.
[19] LACAN. O Seminário, livro 20: O sinthoma. In: Joyce e o enigma da raposa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 70.

Referências
LACAN. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. In: Do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 11.
LACAN. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. In: Clínica da Perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN. A Terceira. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2022.
LACAN. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In: A pulsão parcial e o seu destino. Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro, 2008.
LACAN. O Seminário, livro 10: a angústia. In: Além da angústia de castração. Rio de JaneiroL Jorge Zahar Ed, 2005.
LACAN. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma. In: O sádico e o masoquista. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2024.
SALAMONE. Luis. Topología del amor. Olivos: Gramas Ediciones, 2021.
LACAN. Escritos, In: Subversão do sujeito e dialética do desejo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
FUSELI, Henry. O pesadelo. 1781. Óleo sobre tela, 101,6 x 127 cm. Instituto de Artes de Detroit, EUA.
FARTHING, Stephen, Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
KORETZKY. Carolina. O despertar: Dormir, sonhar, acordar talvez. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.