M. Bernadette S. de S. Pitteri (CLIPP/EBP/AMP)
“Não digo ‘a política é o inconsciente’, mas simplesmente ‘o inconsciente é a política’”. Lacan
Lacan, em “A lógica da fantasia”, define o inconsciente pela política, questão que leva a encarar o governo dos homens e a sempre onipresente crise que os grassa, em particular a democracia e seus percalços.
Política e inconsciente, tema enraizado no ensino de Lacan desde seus primórdios segundo Miller, radicaliza a ideia do Witz como processo social. Freud articula o sujeito do inconsciente ao Outro, a estrutura de linguagem que atravessa o ser de fala.
Definição do inconsciente e não da política, lembra Marie-Hélène Brousse 1, pois dizer que a “a política é o inconsciente” é freudiano e reenvia ao pai, mas a fórmula de Lacan leva ao discurso do Outro barrado e à questão da verdade não-toda. Trata-se aqui do inconsciente com o qual lidam os povos e seus governos (e não do inconsciente real, teorizado em final de análise).
A afirmação de Lacan “Melhor pois que renuncie (à prática analítica) quem não possa unir a seu horizonte a subjetividade de sua época“ 2 é deduzida do axioma que orienta sua leitura de Freud, o “inconsciente estruturado como uma linguagem”.
Lembrando Hegel, Lacan afirma que cada época tem sua subjetividade, o que implica que a vida social, intelectual e cultural têm em comum o mesmo espírito – a época na qual vive o sujeito é um limite inultrapassável. A “realidade transindividual” e a subjetividade da época colocam os diferentes sujeitos na mesma dialética temporal. Sujeito, não indivíduo, que se define pelos significantes dos quais é efeito.
Assim, o inconsciente é nada solipsista, e se “a dialética do desejo não é individual”, o desejo do sujeito é sempre o desejo do Outro. É com o desejo que o analista lida na clínica e ter em seu horizonte a subjetividade de sua época é visar também a política, o que exclui a ideia de neutralidade.
Na experiência analítica é de uma ética que se trata, pois está em questão a vida do analisante tomada no movimento dialético da civilização: a neutralidade do analista deve ser vista em relação à escuta, ao não-julgamento, à não-sugestão, não-aconselhamento, enfim, diz respeito aos imperativos do discurso do mestre.
O discurso do mestre, enquanto discurso do inconsciente, é o “lugar em que se demonstra a torção própria do discurso da psicanálise” (Lacan, 1971, p.9). Através da escuta do sujeito, a experiência analítica propõe tratar o discurso do mestre 3 comandado pelo S1, colocando no lugar de agente 4 o objeto “a”, esvaziado de desejo e, portanto, de sujeito.
Observamos não ser ocioso revisitar os clássicos, em suas formulações sobre política, por se mostrarem atemporais (como o inconsciente, diria Freud) com suas observações, sempre buscando, propondo soluções para o governo dos homens.
Spinoza (Baruch de Spinoza – 1632/1677) que influenciou Lacan em sua juventude, teórico da liberdade e também do Estado, afirma que este não é resultado da razão humana, mas do choque das paixões entre os homens, e se o Estado nasce e vive da paixão, sua essência é a violência: para evitar conflitos, necessário se faz contemplar as necessidades da comunidade, o que torna menos conflituoso o Estado democrático.
A democracia, atualmente em crise em todas as partes do mundo em que é praticada, nasce no Século V A.C em Atenas, na Grécia, e permanece por 180 anos mais ou menos (508/322 A.c.) 5.
Esta forma de governo surge, em sua face direta, quando as decisões relativas à coisa pública são tomadas pelos cidadãos, com direito à palavra nas Assembleias (Eclésias), iguais perante a lei e participantes das decisões da pólis: nesse período houve grande florescimento das Artes, Filosofia, Retórica e Sofística. No entanto, os cidadãos eram minoria (mais ou menos 10% da população): adultos do sexo masculino, nascidos em Atenas, livres. Excluídos estavam as mulheres, os estrangeiros, os escravos, os jovens.
Com a decadência da democracia, por questões externas (invasões) e internas (corrupção), embora nada de parecido tenha novamente raiado em nosso mundo, o conceito ou o sonho de democracia permaneceu; vemos grandes pensadores tentarem soluções para a mesma.
Etienne de La Boétie (1533 – 1592) afirma que o poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo, sendo as religiões com frequência usadas pelos déspotas para manter o povo sob sujeição e jugo. Em seu Discurso da Servidão Voluntária 6, o título traz um paradoxo aparente que desvela o fato de serem os dominados partícipes da dominação, presos em amarras autoinfligidas.
O governo dividido em três figuras que conservam sua independência, mas são interdependentes, foi proposto por Montesquieu (1689/1775): executivo e legislativo eleitos pela população e judiciário composto por especialistas em leis. A divisão dos três poderes implica um regime dinâmico, face à constante autocrítica. A democracia não elimina, ao contrário, expõe os conflitos e desafios que rondam o poder.
O poder foi desvelado em sua nudez, sua face autoritária e manipuladora por Maquiavel (1469/1527) que, expondo a ética do governante, escreveu sobre o estado e o governo como são de fato e não como deveriam ser.
A época de esgarçamento da Metáfora Paterna leva a pensar em governos nos quais o Nome-do-Pai estaria ausente. La Boétie afirma que a tirania se destrói sozinha quando os indivíduos se recusam a consentir com a própria escravidão.
Das críticas ao desvelamento do poder, passando pelas propostas de solução, a questão da democracia lembra o chiste atribuído a Churchill que teria dito ser esta a pior forma de governo, à exceção de todas as demais. Qualquer outra escancara o totalitarismo, se pensarmos que a anarquia não seria governo, mas ausência do mesmo, o que parece ser a proposta de La Boétie.
Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo, analisa os regimes totalitários e demonstra como estes dependem, além da banalização do terror, da manipulação das massas, da falta de crítica frente à fala que procede do poder o que gera a violência, última ratio na ação política. O uso da força é a expressão visível da dominação e a violência administrativa em benefício da força, e não da lei, “torna-se um princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar” (p. 130). Impossível não lembrar a atual situação do governo brasileiro.
Longe de ser consenso, a democracia é “ponto de discórdia do discurso convertido em universal”, diz Marie-Hélène Brousse (Ver Nota 2). No modelo atual, indireto, os cidadãos escolhem seus representantes que, segundo Rousseau, só se representam a si mesmos.
Filósofos como Sócrates, Platão 7, Aristóteles 8 foram críticos ferrenhos da democracia, vivendo no período em que a mesma já apresentava sinais de decadência.
A Psicanálise corre o risco de desaparecer em outro regime que não o democrático, e se a democracia é atacada, a psicanálise o é também, o que deve provocar o analista na direção de um posicionamento 9.
As democracias modernas, aliadas aos saberes científicos, estão referidas ao discurso capitalista, orientando-se pela produção e consumo de massas, num total apagamento do sujeito. No matema do discurso do mestre atual, o do capitalista, não há dialética possível 10. Discurso constituído a partir da aliança com o capital e a ciência, aparece como ideal de um governo “para todos” que recusa a ideia de privilégio. O universal “para todos” tenta homogeneizar as relações entre os homens, mas isso redunda em segregação, onde o “nós” se opõe a “outros”, mecanismo presente no recrudescimento de nacionalismos e racismos.
Mas a universalização, por outro lado, permite questionar a democracia – denominada por Aristóteles como “ditadura da maioria” –, pois o movimento que se dirige ao múltiplo coloca em xeque a ideia da maioria.
Significantes que denotam exclusão criam e limitam outros tantos “todos”, chamados de “minorias”: índios, negros, mulheres, trans. São significantes mestres sem o limite da exceção, o que lembra as fórmulas da sexuação que, no Seminário 20, aponta para a situação atual dos seres falantes que colocam um universal sem exceção que o contenha (lado masculino) e, por outro lado, o não-todo que prescinde do universal.
A experiência analítica propõe uma relação diferente com o universal, não advinda do todo mas da intersubjetidade, ao buscar a separação dos significantes mestres que coletivizam. Tal posição considera cada falasser enquanto solidão irremediável, talvez as “conversações” travadas no Campo Freudiano permitam falar em “democracia lacaniana”.
BIBLIOGRAFIA
Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo – Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Cia. De Bolso, 1951 (1ª publicação).
Aristóteles. A Constituição de Atenas. São Paulo: HUCITEC Ltda, 1994.
_________. Tratado da Política. Lisboa: Ed. Europa-América, 1997.
Brousse, Marie-Hélène. O Inconsciente é a Política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018.
_____________________. Democracia sin Padre – Intervención en el Forum europeo de Turín de la EFP – “Deseos decididos por la democracia en Europa” – 18 de noviembre de 2017.
Freud, Sigmund. O Mal Estar na Civilização (1930) – Volume 18. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
La Boétie, Etienne. Discurso Da Servidão Voluntária – Edição bilíngue Português/Francês. São Paulo: Brasiliense, 1982.
Lacan, J. O Seminário, Livro 14: A Lógica da Fantasia. Inédito.
_______ O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
_______ O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_______ Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Maquiavel, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, coleção “Os Pensadores”, 1973.
Montesquieu. C de S, Baron de (1689/1775). O Espírito das Leis. SP: Martins Fontes, 1996.
Hobbes, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Abril Cultural, coleção “Os Pensadores”, 1983.
Rousseau, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1987.
1 Marie-Hélène Brousse – referência na Bibliografia.
2 Lacan, J. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.. 1998, p. 322).
3 DM: S1 >S2 / a>$.
4 DA: a>$ / S1>S2.
5 No século VI A.C. disputas entre diferentes grupos – comerciantes, artesãos, camponeses – e a aristocracia perigavam chegar a uma guerra civil. Clístenes (508 AC) estabelece a democracia, momento de elaboração de novas leis e mecanismos que reorganizam a sociedade. A democracia ateniense tinha como mecanismo de defesa o ostracismo, exílio de 10 anos para os que representavam perigo para a democracia (opção dada a Sócrates, que preferiu a cicuta ao exílio).
6 “Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem vida a que possam chamar sua?” (Ver bibliografia)
7 Platão propõe um regime diferente do democrático em A república, onde separa os poderes em: O Rei-Filósofo, que deveria governar por haver contemplado a Verdade; o Exército, composto de Homens e Mulheres indiscriminadamente, mas que devia ser mantido com mão de ferro, para ao invés de proteger o povo, voltar-se contra ele; Comerciantes e Camponeses, livres para o crescimento da pólis. Detalhe: a educação devia fazer uma severa censura aos poetas.
8 Aristóteles dizia que se tratava da ditadura da maioria.
9 Ver o Fórum Zadig, por exemplo.