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“O inconsciente provém do laço social porque a relação sexual não existe”i

          Alexandre Romans

Carmen Silvia Cervelatti (CLIPP/EBP/AMP)

 

Com este título trago uma das leituras de Miller sobre o aforismo “O inconsciente é a política”ii – mais uma das fórmulas enigmáticas de Lacan e por isso mesmo convida a pôr de si, convida à articulação, convocando o psicanalista a tecer articulações com vistas à transmissão da psicanálise. A transmissão já é um modo de abordar essa frase, pois a política se relaciona ao social. Mas o inconsciente não é coisa de um, de um sujeito dividido? Não há sujeito do inconsciente sem o Outro, por isso Lacan o definiu, no início de seu ensino, como o discurso do Outro, e, como tal, enquanto discurso, tem a ver com o laço social. O Outro tem uma dimensão social.

Lacan aconselhou seguir Freud em “Psicologia das massas e análise do eu”: “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual”iii – desde os primórdios do falasser sempre há um outro implicado. Na psicanálise não há oposição entre o individual e o coletivo, apesar de ser um tratamento um a um é um dispositivo que faz trabalhar o sujeito do inconsciente mediante o laço social tornando o trabalho possível e consequente. Na política, o psicanalista, por guiar-se por sua falta-a-ser, e não em seu ser, é menos livre na estratégia (a transferência) e na tática (a interpretação)iv por tratar-se de um laço entre dois, desde posições diferentes, no dispositivo analítico.

No Seminário 17, o avesso da psicanálise Lacan enfatizou que todo discurso é uma formação humana que freia o gozo porque cada discurso organiza, localiza um modo diferente de gozo. O discurso do mestre é o discurso do inconsciente, porém o inconsciente somente tem lugar no discurso do analista.

A psicanálise mudou o mundo graças a seus efeitos nos sujeitos, que se estendem em efeitos sociais. Pode-se observar que ela, ao menos, auxiliou no descrédito às proibições e no direito às pulsões, ao próprio gozov. Isso porque Freud foi sensível à tendência da satisfação das pulsões, cuja falta de satisfação exige substitutos gerando mal-estar (nos sujeitos e na cultura), sintoma e neurose. A queda das identificações e a retificação no gozo operadas pelo dispositivo analítico traz consequências no social. Por isso, o psicanalista deve ser sensível ao funcionamento de sua época, como propõe Lacan, para que a psicanálise possa ex-sistir no mundo.

O discurso do mestre, o avesso do discurso do psicanalista, nos permite ler, desde os elementos colocados em seus devidos lugares, por exemplo, qual o S1, imposto para todos, que estando no lugar de agente comanda cada época. “Aos olhos de Lacan, a política procede por identificação, manipula os significantes mestres, busca capturar o sujeito por esse lado”vi – causa da perda de gozo. Nesse sentido, a psicanálise é o avesso da política, subverte o sujeito, confrontando-o ao desejo, sempre inconsciente, e ao gozo, mais-de-gozar, produzido pelo discurso do mestre, visando isolar e delimitar o gozo singular daquele sujeito.

Desejo e gozo, sujeito do inconsciente e pulsão, Outro e objeto a são conceitos que são observáveis no decorrer do ensino de Lacan quando, didaticamente, o designamos em dois momentos de percurso, embora eles não sejam excludentes entre si. No entanto, seja na formulação da falta-a-ser, seja na do furo (do Outro e da pulsão), o que real-mente determina os falasseres enquanto seres sociais é aquilo que Lacan encontrou nesse caminho o objeto a, pulsional, e a “inexistência da relação sexual” porque não há programação possível para os falasseres, e o amor vem em socorro ao social, mais além da solidão constitutiva desses seres de fala.

 

i Miller, J.-A. “Intuições Milanesas II”, Opção Lacaniana online, ano 2, n.6, p.5.
ii Lacan, J. O Seminário, livro 14: a lógica da fantasia. Inédito
iii Lacan, J. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998, p.213,
iv Idem, p.596.
v Miller, J.-A. Psicoanálisis y política. Buenos Aires: Grama Ed, 2004, p.19.
vi Idem, p.21.