Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri (CLIPP/EBP/AMP)
Pode a psicanálise sustentar o que Lacan chamou a “direção da subjetividade contemporânea”, no sentido de subjetividade atual? A questão, diante dos crescentes impasses civilizatórios que Freud antecipou em O Mal-Estar na Civilização, lembra um sombrio prognóstico de Lacan, o de que a Psicanálise poderia entregar as armas 1.
A subjetividade atual, fruto do esgarçamento gradativo da metáfora paterna, detectado desde a criação da Psicanálise, encontra-se submersa em semblantes, em imagens que provocam mudanças constantes. A Psicanálise está preparada frente a este Novo Imaginário?
Em Lacan, no início, o imaginário apresenta-se subsumido pelo simbólico; mas com a prevalência acachapante das imagens nos tempos atuais, não se pode relegar o imaginário a mero servidor do simbólico. Não por acaso, o último ensino aponta para o valor fundamental do imaginário, homogêneo ao real e ao simbólico, enodados pelo nó borromeano.
“O que prevalece é o fato de que as três rodinhas participam do imaginário como consistência, do simbólico como furo e do real como lhes sendo ex-sistente. Portanto, as três rodinhas se imitam” 2.
As imagens assumem o papel protagonista para o falasser que, deslizando de uma para outra imagem, busca a plena satisfação e, ao que parece, o gozo estaria nessa metonímia interminável.
O simbólico não mais consegue atravessar o imaginário como no esquema L, e no “estádio do espelho” a imagem do corpo que aparece simbolizada, mortificada, mascara seus orifícios e impossibilita a apreensão do gozo.
A experiência analítica impõe a questão do corpo vivo, o que não permite pensá-lo apenas a partir do simbólico. “Corpo falante”, expressão que aparece no Seminário XX, presentifica a questão do corpo vivo, que fala e goza, mas que também goza onde não fala, quer dizer, onde não há possibilidade de sentido (Lacan).
O imaginário, não mais depreciado e subjugado pelo simbólico, oferece a possibilidade de viver num mundo no qual prevalece o império das imagens pela consistência que estas oferecem ao ser falante.
No lugar do Outro que devolvia a imagem no espelho, há não mais o corpo do Outro; o que estava investido na relação com o Outro recai sobre a relação com o próprio corpo, do qual há uma ideia de si mesmo, a que Lacan chama “ego” no Seminário XXIII. Neste, a definição de “ego” difere da do sujeito representado entre significantes: o ego se estabelece a partir da relação de pertinência (propriedade, não identificação) com Um-corpo.
“O falasser adora seu corpo”, acredita que o tem, que é um objeto à sua disposição. Afirmar que a crença em Um-corpo é a única consistência do falasser acarreta uma questão espinhosa: Lacan diz ser esta consistência mental e não física. “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, não o tem, mas seu corpo é sua única consistência – consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante…” 3.
A consistência do corpo é mental, o falasser crê ter um corpo para adorar – esta é a raiz do imaginário, ligado que está às crenças do ser falante.
Para Lacan, “Os três círculos do nó borromeano são, como círculos, todos três equivalentes, constituídos de alguma coisa que se repete nos três. Isso não pode deixar de ser considerado” 4.
Dizê-los equivalentes não significa que sejam iguais – no imaginário Lacan coloca o suporte do que é a consistência.
Não há gozo sem corpo, o ser falante não é um corpo, acredita tê-lo e o adora, por ser o único sustentáculo psíquico de que dispõe para construir um sentido para a vida.
Analisando os escritos de Joyce, Lacan atenta para a não-relação deste com o corpo, que ele (Em O retrato do artista quando jovem) “deixa … cair como uma casca” “no momento de sua revolta, esse ego não funciona”, “trata-se de um ego de natureza bem diferente”. 5
O ego corrige a relação faltante no “caso de Joyce que não enoda borromeanamente o imaginário fazendo cadeia com o real e o inconsciente” (ou o simbólico). A escritura do ego enquanto quarto nó dá consistência, corrige o nó e “restitui (…) o nó borromeano” para Joyce.
O ego de Joyce produz uma operação de amarração e faz a função de Nome-do-Pai – o quarto nó, na junção dos três registros.
Pode-se dizer que, para cada um, o Sinthoma entra no lugar da metáfora paterna, corrige a falha na amarração do nó Bô surgindo como quarto nó – este quarto nó é a função atribuída ao Sinthoma.
Resumindo:
Se a consistência do corpo é mental, se o falasser acredita ter um corpo para adorar e se aí está a raiz do Imaginário pensado em consonância com o Real e o Simbólico – pode-se cogitar algum tipo de relação entre Nó Borromeano e consequente Sinthoma e Fantasia?
A fórmula da fantasia fundamental proposta por Lacan ($ <> a) inscreve a relação do $ com o objeto: uma dimensão simbólica ($), outra imaginária (“a”), ligadas pela punção (sinal <> índice do real) 6.
Refletir sobre a fantasia, onde o sujeito é barrado em relação a seus objetos e na qual o objeto “a” é semblante da pulsão, alienados/separados que estão pela punção (símbolo matemático que sugere o real), permite falar de uma “janela para o mundo”.
O falasser não se livra totalmente do narcisismo, sendo o corpo de natureza diferente do inconsciente “estruturado como linguagem”, visto a imagem confusa do corpo próprio comportar afetos que levam para além desta estrutura.
O mundo poluído por imagens permite considerar se o Sinthoma, em regime de Nó Borromeano, teria a mesma função que a Fantasia num mundo com preponderância do simbólico? No sentido em que a função do Sinthoma, assim como a da Fantasia, seria um enquadramento, uma janela para o mundo.
*Cartel EBPSP: o Novo Imaginário
1 (Miller, O Outro que não existe e seus comitês de Ética. 2006, p.14).
2 Lacan, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007 – p. 55.
3 Idem, Ibidem – p. 64.
4 Idem, Ibidem – p. 49.
5 Idem, Ibidem – p. 148.
6 A fantasia fundamental é teorizada por Lacan no Seminário VI.