Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri (CLIPP/EBP/AMP)
Lacan, partindo do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, cria os discursos como produtores de laços sociais. Ao preferir “um discurso sem palavras”[1], busca a estrutura “de um discurso que não fosse semblante” [2], pois todos o são. Os discursos apontam para os laços sociais estruturados pela linguagem, onde figuram os impossíveis de Freud: governar, educar e psicanalisar, a que Lacan acrescenta “fazer desejar”.
Em Vincennes [3], ele diz que há “quatro discursos, cada um se toma pela verdade” e quer dominar, com excecão do discurso analítico; em Psicanálise não se pretende o domínio pois não se pretende curar – esta seria uma tentativa de capturar o gozo.
Os discursos (mestre, universitário, da histérica e do analista; do capitalista, versão do discurso do mestre) são configurações significantes, num jogo entre lugares (agente, outro, verdade, produção) e termos (S1, S2, $. A).
Nesse nível de estrutura significante, só é possível conhecer a maneira pela qual isso opera: temos assim a liberdade de ver no que dá isso, se escrevermos dando a todo sistema um quarto de giro [4].
O que provoca o giro em cada discurso?
Por não haver relacão sexual, é preciso um discurso que estabeleça laço; se houvesse relação, os corpos saberiam se orientar no mundo. O humano não sabe o que fazer com o seu e nem com o corpo do outro; um animal se resolve com o instinto do qual o humano se afasta ao falar [5].
Os discursos são um modo de fundar, para além do Édipo, um laço possível e um impossível devido ao inapreensível do gozo, e como “o discurso como tal é sempre discurso do semblante” [6], nenhum deles aprisiona o real. Para falar, e não apenas para gozar, é preciso um corpo, mas há algo deste que é irrepresentável “o gozo, este sim, existe. É preciso que possamos falar dele” [7], o que se escreve como mais-de-gozar – objeto a.
Aprisionado no discurso a partir do objeto a, um corpo é desenhado pela linguagem; o objeto a não é o corpo, mas o que resta do corpo capturado pelo significante, através das partes destacáveis (seio, fezes, olhar, voz).
Nos discursos os elementos significantes são semblantes, e sendo o objeto a “esse objeto insensato” [8] também semblante, é incapaz de dar acesso ao real, embora se localize partindo do simbólico em direção ao real.
Lacan numa constante busca do modo como o significante toca o corpo, diz em 1979: “Como comunicar o vírus desse sinthome sob a forma de significante? Foi isso que tentei explicar ao longo dos meus seminários” [9].
A clínica contemporânea revela que os significantes organizadores dos laços em épocas anteriores (igreja, exército, família) são semblantes; o contemporâneo não mais acredita na ordem simbólica, o que Nietzsche descreve com a perda da crença nos significantes criados pelo cristianismo[10].
Dialogando com Hegel no Seminário 17, Lacan se contrapõe à dialética triádica do filósofo e propõe uma dialética quadrípode, introduzindo um quarto elemento no qual figura o gozo: o objeto a.
Hegel expõe em sua dialética, a leitura do espírito humano no capítulo “Mestria e Servidão” [11] da Fenomenologia do Espírito [12]. O que impulsiona a dialética hegeliana, Aufhebung [13], é o fato de se chegar à uma tese, que, ao carregar no bojo sua antítese, provoca a tentativa de uma síntese e esta, numa inversão dialética, torna-se uma nova tese que já carrega sua antítese e, “ … a oposição da tese e da antítese só tem sentido na conciliação pela síntese …” [14]. O movimento em parafuso iria ao infinito, mas Hegel idealmente coloca como o fim da história a síntese final, sem mais contradições, tempo de revelacão da verdade toda.
Lacan, buscando o singular de cada um, introduz com sua dialética o objeto mais-de-gozar, que impulsiona o giro do quadrípode e possibilita a mudança do discurso – o gozo, inapreensível em seu silêncio, movimenta e provoca o giro dos discursos.
*Cartel: Discursos e Laços (Apresentado nas Jornadas de Cartéis da EBP – 2025)