Maria do Carmo Dias Batista
Quando Truffaut entrevistou Hitchcock, essa antológica entrevista que durou dez dias inteiros e virou livro, disse-lhe ter observado a mudança ocorrida durante as filmagens de Os Trinta e Nove Degraus na relação do diretor com a verdade, ou com a crença ou com a lógica baseada na realidade.
…dei-me conta que foi aproximadamente por essa época que começou a deixar de tomar em consideração a veracidade da trama ou, pelo menos, a sacrificar constantemente a veracidade em proveito da emoção pura.
Responde Hitchcock:
O que me agrada em Os Trinta e Nove Degraus é o caráter súbito das situações.Robert Donat vai por sua própria iniciativa à polícia denunciar o homem do dedo cortado e contar como escapou à morte graças à bala de revólver alojada na Bíblia; mas não acreditam nele e o algemam; não se sabe como sairá da situação. A câmera passa para a rua e vê-se Donat saltar pela janela, cujo vidro quebra em mil pedaços.Cruza imediatamente com um grupo do Exército da Salvação e mistura-se a eles. A seguir dirige-se a um beco e é engolido num corredor. ‘Louvado seja Deus, chegou o nosso conferencista’, dizem, e o empurram para um estrado onde é obrigado a improvisar um discurso eleitoral. A mulher que ele havia beijado no ônibus e que já o tinha denunciado uma vez aparece com dois homens para levá-lo de carro para a delegacia, mas, de fato, não sei se lembra, são dois falsos policiais, e Donat, amarrado à moça por algemas, escapa com ela graças a um engarrafamento provocado por um rebanho de ovelhas. Vão passar uma noite no hotel, sempre amarrados pelas algemas, e tudo continua…Eis o que há de espantoso, a rapidez das transições. É preciso trabalhar muito para se chegar aqui, mas vale a pena. É preciso empregar uma idéia e depois outra, sacrificando tudo à rapidez. A veracidade não me interessa. É o que há de mais fácil.
Hitchcock, ao falar do filme cujo título preparou, dia a dia, 39 dias, os membros da AMP para a Grande Conversação sobre os Princípios da prática lacaniana, cita, coisa incrível! vários deles: a rapidez – do tempo da sessão, do Witz, da contingência, do real, do acontecimento imprevisto, da prontidão do analista para o ato, da ironia; os semblantes; a perda de valor da verdade diante do saber e do real; a surpresa. Umas práticas soltas, moles, curvilíneas, femininas. Princípios do agir – ágil as dirigem. Até já!
Texto publicado no Jornal do IV Congresso da AMP
Comandatuba, agosto de 2004