Carmen Silvia Cervelatti (CLIPP/EBPAMP)
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.
… toda escritura é leitura – mesmo que uma leitura do que nunca foi escrito … para apontar que o que interessa tanto na escrita quanto na leitura se encontra no não-dito, de modo que devemos nos distrair do que é dito para focar nas entrelinhas.
Clarice Lispector, talvez em “A pesca milagrosa”
Nossa tarefa conduz essa encantadora mecha anelada ao sentido topológico que teria a palavra: nó com que um trajeto se fecha, por seu redobramento invertido…
Jacques Lacan. “Abertura desta coletânea”, in: Escritos
Primeiro, e antes de tudo, quero agradecer a oportunidade da escrita e da publicação, bem como por estar nesta mesa. Dos meus textos e de alguns outros que foram recolhidos na Cairel 2, trata-se de uma escrita a partir da fala, da transmissão do ensino da psicanálise na CLIPP, tarefa a que me dedico há décadas, junto aos meus colegas.
Quero também dizer de minha alegria quando tenho em mãos uma revista da CLIPP. Sempre a quisemos e agora, depois de duas décadas de existência da CLIPP, ela foi possível. E com pujança, trazendo o vivo do ensino a que nos dedicamos neste Instituto, bem como de nosso entorno com a produção de nossos colegas do Campo freudiano e da AMP sobre o tema em questão – a neurose obsessiva. Minha gratidão, sempre, também aos meus colegas de percurso, que dão sustentação a essa publicação. Hoje e especialmente agradeço a Romildo do Rêgo Barros pela sua transmissão sempre precisa e sua presença entre nós, mais uma vez nos acompanhando gentilmente em nossos impasses e em nossas atividades de ensino. Romildo escreveu uma joia de livro sobre o tema, “Compulsões e obsessões: uma neurose de futuro”, que muito me ensina.
Depois de dois textos sobre a Neurose obsessiva aqui publicados, deixarei para meus pares que compõem essa atividade dizer algo mais sobre o tema. Quero falar outras palavras.
O não-dito faz falar, faz escrever, faz ler e, como disse Lacan, nos convida a colocar algo de si. Depois da leitura de vocês, ficarei contente quando receber possíveis ressonâncias, num “redobramento invertido” (Lacan, Escritos).
No Instituto vigora o saber exposto, nossa mais magnânima tarefa quando recebemos os jovens e todos aqueles que querem se investir nessa formação, tão transformadora que é a psicanálise. Além do ensino, falo também e fundamentalmente, da experiência analítica, que fornece o chão para o reviramento de nossa ex-sistência enquanto falasseres, para fazer brotar algo novo. Esta é a versão de nossos laços na Escola de Lacan. Escola que prima pelo saber suposto, que tem prazo de validade – uma análise termina! E, nos confins de uma análise, o saber suposto se transmuta em queda do objeto, gozo opaco, sinthoma, e, quem sabe! passe. Por isso, o Instituto é tão importante, como disse Miller: serve de aguilhão para a Escola, para que ela permaneça viva.
Falo também de nossa formação enquanto psicanalistas. Ela nos acompanha onde quer que a gente vá. O não-dito da entrelinha, das entrelinhas, que Clarice traz em suas palavras, também o é para nós psicanalistas e psicanalisantes. Tudo nunca poderá ser dito porque essa outra borda da pá-lavra sempre trans-(ins)pira o real e aspira a toda verdade mentirosa. Seria uma “A pesca milagrosa”?, como sugere as palavras de minha citação acima, e talvez elas pertençam a esse texto de Clarice Lispector, não tenho certeza. Seja como for, nesse texto de Lispector se escrevem essas sábias pá-lavras do não-dito. O mesmo vale para nós analistas, o impossível de dizer prima pelo real que orienta a nossa formação, sempre atual e atualizada.
Sempre que possível, eu digo do necessário que é e que se concentra em comer a pá-lavra, de Lacan e de Freud, também de Miller e outros. Hoje inventei isso, separar a palavra em pá-lavra, impacto, ressonância. É preciso pegar à unha, tomar o texto, debruçar-se sobre ele, fazer conexões, não entender nada ou entender nada, deixar passar por nosso corpo, nossos pensamentos, nossa loucura, nossos delírios. Então, poder absorver o sumo da terra prenhe, cheirada, tocada, revirada, pá-lavrada.
Assim, poder traduzir em palavras encadeadas para que o Outro, nosso companheiro de estrada, desde a nossa primeira experiência de gozo, traga ou não – sempre é possível! – para que o Outro devolva nossa mensagem invertida. Portanto, isso depende sim, de deixar entrar, metabolizar o gozo, deixar cair o objeto para causar o desejo, também desses nossos objetos – para causar tem de ser não narcisicamente e sem enfatuação. São vocês, nós, que escutam, leem, para que façam uso daquilo que ressoaram de si e de alguns outros. Isso não é, não acontece sem algum esforço, algum amor, algum riso, alguma vergonha, alguma dor, alguma alegria.
Como essa que sinto hoje. Nessa topologia, que me convoca e invoca, num redobramento invertido, um trajeto que, topologicamente, hoje se fecha moebianamente; portanto sempre aberto, enquanto eu existir, cruzando novos rubicões, como Romildo gosta de trabalhar.
Aos meus colegas de percurso, meus verdadeiros Outros, se assim posso dizer, estão aqui minhas pequenas e poucas palavras, porque palavra demais é desperdício, não é resto! Assim:
“Outras palavras, outras palavras
Para afins, gatins, alfa-luz, sexonhei la guerra-paz
Ouraxé, palávoras, driz, okê, crisexpacial
Projeitinho, imanso, ciumortevida, vidavid
Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me Logun
Homenina nel paraís de felicidadania
Outras palavras, outras palavras”.
Assim disse Caetano, que de veloso pouco há.
Palavras que ao obsessivo tanto custa serem faladas.
*Lançamento da revista Cairel 2 CLIPP (28.06.2025).
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